Podemos acabar com a pandemia em 2022
Esta é uma guerra global. Os governos dos países ricos devem apresentar-se e
vencê-la agora
*Por Martin Wolf – Valor Econômico – 26/05/2021, atualizado há uma semana.
Somos uma espécie estranha. Somos capazes de produzir maravilhas, mas, então, fracassar em deixá-las ao alcance de todos os que poderiam se beneficiar delas, mesmo a custos triviais em comparação aos ganhos gerais. A maravilha agora é a velocidade no desenvolvimento de vacinas eficazes contra a covid-19. O fracasso é garantir uma produção e distribuição em escalas suficientes. Em nossa estupidez, estamos jogando fora uma oportunidade gloriosa.
Em “Uma Proposta para Acabar com a Pandemia da Covid-19”, do Fundo Monetário Internacional (FMI), colocam em evidência tanto a oportunidade quanto os benefícios. O plano proposto por eles consiste em vacinar pelo menos 40% da população de todos os países até o fim de 2021 e pelo menos 60% até julho de 2022, assim como garantir o acesso geral aos testes de detecção e à capacidade de rastreamento dos casos. O estudo estima os benefícios econômicos cumulativos em US$ 9 trilhões (US$ 1.150 por pessoa), em comparação a um custo de US$ 50 bilhões – uma proporção de 180 para 1. Seria um dos investimentos de maior retorno já vistos.
É tolice também gastar literalmente trilhões de dólares em auxílio pela pandemia às pessoas dentro de suas fronteiras, enquanto se deixa de gastar algumas dezenas de bilhões para acabar com a pandemia mundialmente o mais rápido possível
Esta pandemia é, acima de tudo, uma crise de saúde. Mas também é um desastre econômico. O relatório está certo ao insistir que a “política pandêmica também é uma política econômica, pois não há um fim permanente para a crise econômica, sem um fim para a crise de saúde”. Uma comparação entre as previsões do FMI de outubro de 2019 e as de abril de 2021 indica que a covid-19 reduziu a produção mundial real em US$ 16 trilhões (a preços de 2019) só em 2020 e 2021. Se a pandemia continuar, essas perdas continuarão se acumulando por um longo futuro.
O relatório também estima que 40% dos ganhos previstos no plano iriam para os países de alta renda, uma vez que uma recuperação mundial também fortaleceria deles. Isso acrescentaria pelo menos US$ 1 trilhão à sua arrecadação tributária. Além disso, ampliar a vacinação não apenas aceleraria a reabertura econômica. Também reduziria a probabilidade de que alguma futura variante suplante as vacinas disponíveis, o que poderia voltar a levar o mundo inteiro a novos fechamentos.
O plano é gastar US$ 50 bilhões, dos quais pelo menos US$ 35 bilhões seriam financiados por doações e o restante por créditos em condições favoráveis. Em vista dos compromissos assumidos, seriam necessários apenas mais US$ 13 bilhões em doações. Um ponto crucial, porém, é que não podem se tratar apenas de promessas, mas de financiamento antecipado, de investimentos sem garantia e de doações de vacinas, agora.
No ritmo normal considerado pelo estudo, a estimativa é de uma oferta global de 6 bilhões de doses no fim de 2021, que seriam suficientes para vacinar 3,5 bilhões de pessoas (45% da população mundial). Isso permitiria cobrir a população mundial mais prioritária. Na prática, contudo, alguns países vêm vacinando crianças, enquanto outros, quase ninguém. Portanto, a vacinação de fato nos países de baixa e média renda será bem inferior a 45%.
Ainda pior, há riscos plausíveis para esse cenário. Entre eles, a falta de matérias-primas, as restrições às exportações, as preocupações quanto à segurança das vacinas particularmente em países em desenvolvimento e o provável uso das doses para vacinar crianças ou como reforço, de forma a compensar a perda de das vacinas. Qualquer uma dessas eventualidades – ou todas elas – reduziria a disponibilidade de vacinas para os países em desenvolvimento, adiando o fim da pandemia mundial.
Então, o que se propõe em termos de vacinação?
Primeiro, alcançar as metas mais ambiciosas de vacinação. Isso exigirá contribuições adicionais de US$ 4 bilhões em dinheiro antecipado para a Covax, a iniciativa criada para garantir acesso global às vacinas. Isso permitiria à Covax finalizar encomendas, ativar capacidade global não utilizada e distribuir vacinas. lém disso, países individuais também deveriam ser auxiliados a encomendar mais doses. As restrições às exportações de matérias primas e a vacinas já em seu estado acabado precisam ser levantadas. Por fim, o excesso de vacinas deve ser doado para os locais onde a necessidade for maior.
Segundo, garantir-se contra os riscos, assinando contratos por 1 bilhão de doses adicionais no primeiro semestre de 2022. Isso exigiria um financiamento adicional de US$ 8 bilhões. Também, empreender esforços extras para encorajar o licenciamento voluntário e a transferência internacional de tecnologia. Além disso, é essencial criar um sistema global de vigilância genômica e de modificação de vacinas, para o caso de necessidade. Outro componente essencial é a transparência em todos os pedidos e nas cadeias produtivas que os atenderão.
Terceiro, gerenciar com sensatez o período de escassez de vacinas. Portanto, deve[1]se investir em capacidade de entrega e em combater a “hesitação em vacinar-se”. Além disso, é preciso avaliar todas as vacinas potenciais, incluindo as da China ou da Rússia. Também é vital assegurar que as vacinas sejam gratuitas para os mais pobres. Enquanto as vacinas continuarem em falta, as doses devem ser mais bem aproveitadas, como o Reino Unido fez, dando as primeiras doses a um número maior de pessoas, fracionando as doses ou dando uma dose única às pessoas que já tiveram a doença.
Os detalhes técnicos do programa proposto podem precisar de ajustes. O mesmo vale, portanto, para a soma precisa do financiamento necessário. Mas não pode haver dúvida quanto à sua lógica como um todo. É tolice imaginar que o foco nacional dos programas de vacinação de hoje em dia será eficaz para lidar com uma pandemia mundial. É tolice não expandir a oferta global de vacinas e distribuí-las da forma mais urgente possível. É tolice, também, gastar literalmente trilhões de dólares em auxílio pela pandemia às pessoas dentro de suas fronteiras, enquanto se deixa de gastar algumas dezenas de bilhões para acabar com a pandemia mundialmente o mais rápido possível.
Se verdades tão autoevidentes não convencerem os governos das democracias de alta renda, então, que eles considerem a geopolítica. Por quantias modestas, eles podem transformar as angústias de bilhões de pessoas que vivem em países vulneráveis e, assim, provar que além de competentes, também se importam. Podem ficar bem, fazendo o bem. Se não mostrarem a urgência necessária para gastar essas quantias triviais, a posteridade vai querer saber o que raios eles estavam pensando. Esta é uma guerra global. Os governos dos países ricos devem apresentar-se e vencê-la agora.
ARTIGO730