Que Estado queremos?
Se quisermos manter o assistencialismo estatal e redistribuir renda, o Brasil vai quebrar
Luiz Felipe D’Ávila, O Estado de S.Paulo – 23 de setembro de 2020 | 03h00
No Brasil patrimonialista, a lei nunca é igual para todos. Toda lei traz no seu encalço as exceções, os privilégios e os benefícios de cada categoria ou estrato social.
O Estado patrimonialista criou uma gigantesca rede de privilégios corporativistas, cujo objetivo é perpetuar a dependência dos cidadãos de favores concedidos pelo Estado. Mais de 76 milhões de brasileiros recebem um contracheque do governo mensalmente e a maioria das empresas depende de isenção fiscal, reserva de mercado e medidas protecionistas para se tornar lucrativa. Nós nos tornamos uma sociedade viciada nas benesses do Estado.
Num país de dependentes do governo, a necessidade de reformar o Estado patrimonialista é uma tarefa difícil, que requer mobilização cívica e liderança política.
A crise da covid-19 trouxe à tona os vícios, as mazelas e a insustentabilidade do Estado patrimonialista. Mas os bons governadores anteciparam-se ao governo federal e aceleraram as reformas estruturais dos Estados.
O Rio Grande do Sul aprovou as reformas administrativa e previdenciária. Minas Gerais avançou com a reforma administrativa e com o programa digital, simplificando regras e facilitando a vida dos cidadãos em obter serviços e licenças. Alagoas saiu à frente dos demais Estados no saneamento básico: leiloará a concessão do saneamento básico do Estado antes mesmo de o governo regulamentar o marco do saneamento. O Espírito Santo continua a ser um exemplo de solidez fiscal responsável para o País.
É verdade que nos últimos dois anos já demos alguns passos importantes no âmbito federal. Aprovamos a reforma trabalhista e a previdenciária e há sinais encorajadores de que o Congresso Nacional avançará com as reformas tributária e administrativa. A primeira é vital para simplificar um sistema tributário caótico que prejudica a produtividade, abre espaço para a sonegação e a corrupção e estimula desastrosa guerra fiscal entre os Estados. A segunda é crucial para criarmos uma máquina pública eficiente, capaz de prestar serviço público de qualidade, e valorizar os bons servidores públicos, oferecendo-lhes oportunidade de ascensão na carreira e reconhecimento profissional por seu bom desempenho.
A reforma administrativa ajudará a padronizar regras das carreiras e a eliminar os injustificáveis privilégios dos príncipes da burocracia estatal, que gozam férias de 60 dias e desfrutam de penduricalhos escandalosos – como auxílio-moradia e auxílio-viagem –, que criam enormes desigualdades nas carreiras do serviço público.
A pergunta a que temos de responder, como sociedade, é: que Estado queremos?
No século 19, a revolução industrial e a ascensão social da burguesia trouxeram uma nova demanda da sociedade. O desejo era limitar o poder do governo por meio da Constituição, para preservar a liberdade individual das mãos pesadas do Estado.
Já no século 20, a traumática experiência de duas guerras mundiais marcou uma geração com os horrores da destruição, da morte, da fome e do genocídio e as sociedades democráticas passaram a exigir a criação do Estado de bem-estar social. Mas o acúmulo das duas funções – o assistencialismo estatal e a redistribuição de renda – produz o risco de levar o Estado à falência.
Assim como acabar com a escravidão se tornou a questão moral e política do século 19, o combate à desigualdade é a questão central do século 21. A crescente desigualdade tornou-se inaceitável para as sociedades democráticas. Os governos são cada vez mais pressionados por seus eleitores a adotarem políticas públicas para reduzir a desigualdade. Essa demanda da sociedade nos obrigará a repensar o papel do Estado.
Queremos aprimorar o Estado de bem-estar social ou desejamos que a função do Estado seja redistribuir renda e regulamentar as atividades públicas? Se quisermos manter o Estado assistencial e redistribuir renda, o Brasil vai quebrar.
A proposta da renda básica toca no cerne da questão do Estado. Para se tornar economicamente viável será preciso condensar programas sociais, reduzir drasticamente o gasto com a máquina pública e acelerar as parcerias público-privadas, as concessões e privatizações, para melhorar a qualidade do serviço público.
O Estado não precisa gerenciar escolas, hospitais, empresas de saneamento ou de energia. Sua função é regular essas atividades e deixar o setor privado e o terceiro setor administrarem os serviços públicos. No Estado enxuto e eficiente, existem critérios objetivos de avaliação da qualidade dos serviços públicos e de mensuração do impacto dos programas de governo, o que permite aos governantes sepultar os programas ineficientes e expandir os bons programas.
Se mantivermos o Estado patrimonialista, o programa de renda básica não ajudará a reduzir a desigualdade social. Um país viciado em Estado só pensa em extrair receita do setor produtivo para financiar o setor improdutivo. Para o Brasil o desafio é claro: ou sepultamos o Estado patrimonialista ou ele continuará a ser o maior vetor de crescimento da desigualdade social.
CIENTISTA POLÍTICO, É AUTOR DO LIVRO ‘10 MANDAMENTOS – DO BRASIL QUE SOMOS PARA O PAÍS DE QUEREMOS’
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