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Reforma anticheia em Porto Alegre teria custado 5% do prejuízo

Perdas são estimadas em até R$ 8 bi; recuperar sistema dos anos 1970 teria custado R$ 400 milhões

Por Priscila Mengue, O Estado de S. Paulo, 09/06/2024

Enquanto enxurradas e deslizamentos devastaram rapidamente a Região dos Vales e a Serra Gaúcha, as enchentes avançaram gradualmente até Porto Alegre, há pouco mais de um mês. A capital gaúcha é um exemplo de local que poderia ter sofrido menos impactos se tivesse tomado medidas de prevenção, principalmente de manutenção e melhoria do sistema antienchentes, criado nos anos 1970.

A prefeitura estima prejuízo de R$ 6 bilhões a R$ 8 bilhões para Porto Alegre, entre arrecadação e reconstrução, sem contar o impacto privado. A gestão Sebastião Melo (MDB) tem admitido falhas na proteção antienchentes, mas diz que foram feitas melhorias, além de citar histórico de problemas na rede e um contrato permanente de manutenção. Anunciou ainda R$ 500 milhões para recuperar o sistema. “Todas as manutenções estavam em dia; temos relatórios específicos”, diz o diretorgeral do Departamento Municipal de Água e Esgotos (Dmae), Mauricio Loss.

Ele menciona que esse tipo de sistema precisa de reparos frequentes, tanto que foram atendidos 768 chamados no ano passado para manutenção eletromecânica, desde troca de óleo até queima de motor. Além disso, afirma que outra fase de obras precisará envolver revisão do que seriam problemas do projeto, como a altura de parte das casas de bombas (inundadas na enchente). “O sistema conseguiu conter o avanço das águas. Justamente por isso deu tempo para as pessoas saírem de casa. Não tivemos morte por afogamento ou rompimento de dique. Apresentou falhas, sim. E vamos proceder os reparos necessários para devolver a segurança a Porto Alegre”, continua.

ANTIGAS DIFICULDADES. Problemas nas casas de bombas, muros e diques eram conhecidos há anos. Existia até estimativa de quanto seria preciso para eliminá-los. Levantamento de um consultor feito no ano passado apontava custo de R$ 400 milhões para recuperar as estações de bombeamento. O valor é semelhante ao previsto pela prefeitura para reconstruir o sistema. Ou seja, cerca de 5% do prejuízo total estimado pelo município até agora.

Para especialistas, uma reforma do sistema poderia ter evitado grande parte dos danos em Porto Alegre. Mas não todos, pois a altura atual de alguns diques e o fato de a rede de proteção não abranger toda a área ribeirinha tornam vulneráveis ilhas e bairros das zonas norte e sul, por exemplo. “O desempenho do sistema contra cheias de Porto Alegre foi, infelizmente, insuficiente para proteger a cidade da cheia.

Em função das falhas, a cidade foi inundando, o que, a rigor, não deveria ter acontecido”, diz Fernando Mainardi Fan, professor do Instituto de Pesquisas Hidrológicas (IPH) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Ele pondera que outras áreas da cidade não são abrangidas pelo sistema de diques (barreiras), muro e casas de bombeamento – o que deveria ser rediscutido. “Tudo isso deve ser incluído num plano de reconstrução e reconstituição do sistema.”

Também hidrólogo, consultor e professor aposentado da UFRGS, Carlos Tucci foi responsável pelo levantamento de que R$ 400 milhões resolveriam parte do problema das casas de bomba.

PROTEÇÃO. A rede antienchente inclui cerca de 68 km de diques (barreiras, como vias elevadas), comportas e muro, além de casas de bombeamento. Ao todo, abrange a zona norte (também afetada pelo Rio Gravataí), o centro histórico e parte da zona sul – o restante dessa região e as ilhas não têm essa defesa. A proteção foi construída no início dos anos 1970, pelo extinto Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS), com novas casas de bombas criadas ao longo de décadas. Nos anos 1990, sua gestão passou para o Departamento de Esgotos Pluviais (DEP) de Porto Alegre, extinto (sob críticas) em 2019. Hoje, é ligado ao Dmae.

No Plano de Metas atual da prefeitura, consta que o sistema operava em 85% da capacidade no início da gestão, em 2020, e seguia nessa média em 2023. “A ampliação dessa meta representaria esforços antieconômicos de baixa repercussão na eficiência”, justificava a gestão Melo no documento.

Nas últimas décadas, em várias ocasiões, se cogitou derrubar o muro, inclusive pelo histórico de décadas sem cheias tão expressivas. Isso porque, após 1967, outros casos perto ou acima da cota de inundação só ocorreram em 2015, em 2023 (duas vezes, em setembro e novembro) e neste ano. “(O sistema) Era como um seguro. Um dia iria acontecer, só não se sabia quando”, diz Tucci. “O projeto também não era completo, tinha defeitos, e a manutenção foi negligenciada por todos esses mandatos. Um somatório de problemas ao longo do tempo, que deixou a cidade desprevenida.”

Como o Estadão mostrou, prevenir custa mais barato do que reparar estragos pós-desastre: estudos estimam retorno de cerca de US$ 4 para cada US$ 1 investido em infraestruturas mais resilientes, por exemplo. Agora, diante do colapso do sistema porto-alegrense anticheias, Tucci propõe quatro etapas de ações para que não haja novas inundações. Ele é diretor de hidrologia da Rhama Analysis, consultoria que tem feito os mapas de previsão de inundação na capital gaúcha em conjunto com o IPH/UFRGS.

ETAPAS. As quatro etapas são: inspeção e diagnóstico, para avaliar a estrutura antienchentes e verificar a topografia, a fim de identificar problemas preexistentes e causados pela cheia, assim como alterações básicas necessárias; anteprojeto de recuperação, com propostas para recuperar o sistema antienchente, com melhorias mais simples, como eventual alteamento de parte dos diques (barreiras de contenção); estudo de modernização, com propostas de melhorias ao sistema antienchente, o que pode envolver mudanças mais estruturais e tecnológicas; e proposta de Plano de Contingência e Emergência, para orientar procedimentos, comunicação e tomada de decisões em eventos extremos.

Tucci estima que só recuperar as estações de bombeamento e outras medidas básicas da primeira etapa possam chegar a cerca de R$ 500 milhões. Ações adicionais envolvem investimento maior.

Em bairros urbanizados não contemplados pelo sistema, na zona sul, é possível discutir a criação de mais diques. Além disso, cita outra medida que deveria ser tomada não só no Rio Grande do Sul, mas nacionalmente: monitoramento e previsão de risco hidrológico. Esse tipo de monitoramento e alerta seria feito a partir de dados topográficos (como de quais são áreas mais baixas e altas) e de previsão do tempo. A adoção desse tipo de tecnologia permitiria simulações dos efeitos da chuva, do vento e da elevação de outros corpos d’água nas cidades.

Dessa forma, seria possível prever com mais precisão possíveis locais impactados, para direcionar decisões do poder público, como de alertas de evacuação. “O Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, do governo federal) prevê chuva, não nível e vazão. Falta completar com a parte do solo, do nível dos rios.”

O sistema foi criado após a enchente de 1941, quando o Guaíba chegou a 4,75 m. Desta vez, aproximou-se dos 5,35 m. Embora ambos ligados ao El Niño, os casos ocorreram de modo distinto, sugerindo elo com a crise climática.

“O aumento da temperatura do planeta causa eventos de maior intensidade, em menor intervalo de tempo”, diz Tucci. Segundo ele, as possíveis medidas para evitar e se proteger de novas cheias extremas variam conforme as características de cada local. Soluções para a região metropolitana não são as mesmas para o interior, por exemplo.

Ele analisa que os problemas na Grande Porto Alegre poderiam ser mitigados e evitados com sistemas antienchente eficazes. Se o da capital falhou, os de outras cidades tinham proteções abaixo do nível de elevação dos rios neste evento extremo (como em Canoas, uma das mais afetadas). Além disso, parte dos municípios nem sequer tem essa proteção (como Eldorado do Sul, quase todo submerso).

Em geral, o consultor também fala em estudos de bacias, de modo a indicar intervenções de drenagem para além das zonas ribeirinhas. Na Grande Porto Alegre, a cheia esteve ligada especialmente ao alto volume de precipitação no entorno de grandes rios que deságuam na região (como Jacuí, Taquari, dos Sinos e Caí). No centro da capital, as águas chegam em um estreito de cerca de 900 m, com represamento ainda maior por influência do vento sul.

SEM OPÇÃO. Além disso, Tucci diz que esse tipo de proteção não é indicado para o Vale do Taquari, por exemplo, onde as cheias devastaram cidades como Lajeado, Arroio do Meio e Cruzeiro do Sul. Algumas até estudam mudar de local após as cheias deste ano e de 2023. “Lá, não tem como fazer a obra, porque a bacia é grande e a velocidade é alta. Não tem como fazer reservatório ou dique, custaria uma fortuna”, compara. Nesse caso e no de locais com histórico de deslizamentos, diz que medidas mais indicadas envolvem sistemas de previsão e alerta hidrológico, além do zoneamento de áreas de risco (com restrições de ocupação) e do reassentamento de parte da população.

Segundo a Defesa Civil, mais de 2,3 milhões de pessoas foram afetadas por enchentes, enxurrada e deslizamentos em 476 dos 497 municípios gaúchos. Mais de 600 mil ficaram desalojados ou desabrigados. Em Porto Alegre, a prefeitura estima ao menos 157,7 mil diretamente afetados.

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