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Trump volta a testar a democracia

Por uma questão de projeto, EUA não são à prova de ditadores

Por The Economist, tradução de Augusto Calil, O Estado de S. Paulo, 22/05/2024

A presidência dos Estados Unidos é um cargo cobiçado, pelo menos para um certo tipo de homem geriátrico louco por poder. Os fundadores do país quase tornaram o cargo ainda mais exaltado. John Adams, o primeiro vice-presidente, achava que o presidente deveria ser conhecido como Sua Majestade Eletiva ou Sua Potência. O Senado endossou outra forma de tratamento: Sua Alteza, o Presidente dos Estados Unidos e Protetor de suas Liberdades. Mas a Câmara dos Deputados rejeitou títulos grandiosos, e George Washington concordou com isso para dissipar as alegações de que ele teria ambições monárquicas. De qualquer forma, as acusações foram feitas e têm sido repetidas sempre que um dos partidos não gosta do que o presidente está fazendo, ou seja, na maior parte do tempo.

Os romancistas levaram esses medos mais longe, imaginando a derrubada da democracia americana por um ditador carismático: o presidente Buzz Windrip em It Can’t Happen Here (1935), de Sinclair Lewis; Nehemiah Scudder na série de ficção científica de Robert Heinlein If This Goes On (1941); Charles Lindbergh em The Plot Against America, de Philip Roth (2004). O presidente Scudder, um pregador que se tornou político do interior, vence as eleições de 2012. As eleições de 2016 são então canceladas.

Conforme as eleições de novembro se aproximam, não são apenas os romancistas que imaginam cenários semelhantes. Os democratas veem Donald Trump como um aspirante a tirano por causa da sua tentativa de permanecer no cargo depois de perder as eleições de 2020. Trump, por sua vez, denuncia Joe Biden, que venceu as eleições apesar das maquinações de Trump, como um usurpador. Trump afirma que Biden está abusando de sua autoridade para iniciar procedimentos jurídicos falsos e, assim, prender Trump. Biden, juntamente “com um bando dos seus capangas, desajustados e marxistas mais próximos”, está tentando “destruir a democracia americana”.

Os esforços de Trump para anular as eleições fracassaram; os tribunais revertiam regularmente as medidas do governo dele e, mesmo que seja reeleito, ele será limitado pela Constituição a apenas mais um mandato. Mesmo assim, alguns dos seus críticos argumentam que a democracia dos EUA é vulnerável e consideram ingênuos aqueles que dizem o contrário.

DITADURA. No ano passado, Robert Kagan, antigo conselheiro de política externa de vários republicanos, escreveu um ensaio para o Washington Post argumentando: “Há um caminho claro para uma ditadura nos Estados Unidos, que está ficando mais curto a cada dia”. Não são apenas os adversários de Trump que falam assim. Um dos seus ex-secretários de gabinete observa: “A Constituição funciona porque é empregada com regras e normas que todos nós cumprimos”. Trump, na opinião dele, “corrói essas regras e normas e continuará a fazê-lo”, sendo, portanto, “uma ameaça à democracia tal como a conhecemos”.

O ex-presidente, que gosta de comentar suas ações como se delas fosse um observador, entrou no debate. No ano passado, ele foi questionado na Fox

News se seria um ditador caso fosse reeleito. Trump cogitou a ideia antes de rejeitá-la. Como tantas vezes acontecia com ele, era difícil saber quais de suas declarações conflitantes levar a sério, se é que alguma foi séria. Em um sentido menos teórico, a Suprema Corte está avaliando se os presidentes podem ser processados, e em que circunstâncias. Pelo menos alguns dos juízes provavelmente concordarão com a opinião de Trump: “Não se pode ter um presidente sem imunidade”.

Ao pensar no que um segundo mandato de Trump traria, é difícil evitar cair na histeria ou na complacência. É provável, dados os instintos de Trump, o comportamento passado e o seu domínio sobre o restante do partido, que ele degrade ainda mais a democracia em um segundo mandato. Mas avaliar a probabilidade do pior cenário é impossível. Há outra maneira de ponderar até que ponto as coisas podem ficar ruins: despersonalizar a análise.

Deixando de lado o imponderável – o que Trump e Biden realmente pretendem –, quais são as restrições à Presidência, seja quem for que ocupe o cargo? Se alguém se tornasse presidente e tivesse a destreza administrativa e a determinação firme para minar a Constituição (descrições que provavelmente não se adaptam a Trump), quanto dano ele ou ela poderia causar? Ou, para colocar a questão em termos mais alarmantes, até que ponto os EUA são à prova de ditadores?

CARGO FRACO. Durante a maior parte do primeiro século da Presidência, a ideia de que um homem pudesse governar o país parecia absurda. O cargo era fraco demais para isso. Sob Washington, todo o Poder Executivo consistia em quatro secretários de gabinete e cinco secretários efetivos. Só depois da 1.ª Guerra, quando o governo federal cresceu dramaticamente e os fascistas e os comunistas tomaram conta das democracias europeias, é que a questão começou a parecer relevante, e a ideia não era sequer vagamente plausível.

No fim da 2.ª Guerra, o número de funcionários federais aumentou para 2,5 milhões. Nas décadas de 40 e 50, tornou-se comum os americanos referirem-se ao seu presidente como o “comandante-chefe”. Um gabinete que originalmente contava com um punhado de funcionários agora presidia sobre milhões de pessoas, para não falar de um botão que poderia destruir outros países e, em troca, atrair a destruição dos EUA.

Embora o poder do presidente tenha aumentado enormemente, as restrições legais ao exercício desse poder não cresceram proporcionalmente. Houve apenas duas emendas constitucionais significativas que podem impedir um presidente descontrolado: a primeira diz que nenhum presidente pode ser eleito para mais de dois mandatos (22.ª Emenda); e a outra, que o vice-presidente assumirá o poder se o Congresso decidir que o presidente está incapacitado (25.ª Emenda). Nenhuma das duas restringe o exercício diário do poder presidencial.

Nos anos entre as guerras, a ditadura teve uma certa elegância entre a elite americana. Eleanor Roosevelt sugeriu ao marido que o país poderia precisar de um “ditador benevolente” para tirá-lo da Depressão. “Se algum dia este país precisou de um Mussolini, este momento é agora”, declarou um senador da Pensilvânia. Este tipo de conversa só foi silenciado pelo ataque a Pearl Harbor.

O fato de nada ter acontecido como as ditaduras imaginadas por Lewis, Heinlein ou Roth deve-se em grande parte ao fato de ninguém como Windrip, Scudder ou Lindbergh ter sido eleito presidente. As aulas de educação cívica ensinam que isso também tem a ver com a Constituição. Os EUA são tão grandes, e o poder político tão difuso, com tanta autoridade atribuída aos Estados, que o governo de um homem só ainda parece impraticável.

Golpes militares – o caminho mais comum para a chegada dos ditadores ao poder – são quase impossíveis nos EUA. O exército está entre as instituições políticas mais saudáveis do país, com líderes determinados a permanecer fora da política. A grande maioria dos agentes policiais trabalha para os governos estaduais e locais, e não para o presidente, de modo que a repressão por parte de um Estado policial também seria difícil de organizar. Esse tipo de tirania pode ser afastada com segurança.

Os tribunais são independentes e determinados – mesmo aquele em que três dos nove juízes foram nomeados por um dos candidatos presidenciais deste ano. A imprensa é difusa demais para que um partido possa controlá-la nos moldes de Viktor Orbán e do seu partido Fidesz, na Hungria. Mesmo com um ataque determinado à burocracia federal, do tipo que alguns pensadores trumpistas têm em mente, é difícil conseguir que qualquer organização que emprega 25 mil advogados cumpra as ordens de uma pessoa. Tanto o atual presidente quanto o anterior viram políticas relativamente mundanas serem atrasadas ou frustradas por desafios processuais: imagine o que aconteceria se o presidente tentasse cancelar as eleições de 2028.

Muitas destas restrições dependem de hábitos e normas democráticas, e não do que está escrito na lei. Algumas das convenções mais importantes que restringem a Presidência são mais jovens do que as pessoas que atualmente disputam o cargo. A noção de que o Departamento de Justiça não pode simplesmente cumprir as ordens do presidente só existe desde a era da discoteca. Conforme os governantes mudam, as normas podem mudar com eles, deixando a Constituição, as atas do Congresso e a Suprema Corte como freio. É aqui que as coisas ficam mais preocupantes.

ANTITIRANIA. A visão da aula de moral cívica a respeito do governo americano descreve a Constituição como uma proteção visionária e magistral contra a tirania. No entanto, réplicas da Constituição americana foram adotadas em outros países e não conseguiram afastar os tiranos. No século 19, as novas repúblicas da América Latina copiaram esse modelo – federalismo, uma suprema corte, uma legislatura e um presidente – e suas democracias foram derrubadas por homens armados.

No século 20, as Filipinas recortaram e colaram a Constituição americana para trazê-la ao seu país, mas Ferdinand Marcos conseguiu minar a democracia e instalar-se como um homem forte por mais de 20 anos. Em contraste, onde os EUA ajudaram a estabelecer sistemas parlamentares, como no Iraque, na Itália e no Japão, as instituições resistiram. Isto suscita um pensamento herético: e se os EUA tiverem sido à prova de ditadores apesar da sua Constituição, e não por causa dela?

A interpretação da Constituição da aula de moral e cívica está centrada nos freios e contrapesos que impedem que qualquer parte do governo fique forte demais. No entanto, o controle mais explícito sobre o presidente, o impeachment, não funciona. Embora três presidentes tenham sido enviados pela Câmara para julgamento no Senado (Trump foi julgado duas vezes), a Câmara Superior nunca destituiu realmente nenhum presidente do cargo. Mesmo quando Mitch McConnell, o líder da maioria no Senado na época, disse que Trump era “prática e moralmente responsável” pelo caos de 6 de janeiro de 2021, ele e os seus colegas decidiram não destituí-lo do cargo. A razão que ele apresentou foi que Trump tinha claramente cometido um crime e que o local certo para processá-lo seriam os tribunais. Mas o julgamento do 6 de Janeiro, muito atrasado e com base jurídica questionável, mostra quão incerta é a capacidade do sistema jurídico para limitar o poder presidencial.

Jack Smith, o promotor do caso, defende uma teoria jurídica não testada de que o presidente fez parte de uma conspiração para fraudar os EUA. Antes que o caso possa prosseguir, a Suprema Corte tem de decidir quando o presidente está ou não imune a processos judiciais, uma questão em que a Constituição não ajuda. A equipe jurídica de Trump recuou da sua afirmação inicial segundo a qual um presidente deveria ter imunidade mesmo que mandasse assassinar um rival político.

A sua nova posição diz que os presidentes estão imunes a processos judiciais quando desempenham as suas funções oficiais – uma opinião que alguns membros da Suprema Corte parecem dispostos a aceitar. Mas são as coisas feitas a título oficial que são as mais preocupantes para o país, e não pequenos atos de corrupção pessoal ou rixas com rivais. Se os presidentes estão imunes a processos judiciais pelo que fazem como presidentes, e se têm imunidade política porque o impeachment não é uma verdadeira forma de controle, então eles estão acima da lei.

Isso não fazia parte do plano original. Os Pais Fundadores não previram o aumento do partidarismo, o que esvaziou a cláusula de impeachment. Alguns dos poderes que os primeiros Congressos entregaram ao presidente, no entanto, foram concebidos para tornar um pouco mais fácil o que os americanos hoje chamariam de autocracia. Embora os Fundadores quisessem impedir um ditador local, também tinham acabado de viver uma guerra pela independência contra um inimigo poderoso e queriam dar ao presidente os meios para manter a ordem em tempos de crise.

PODERES ESPECIAIS. O Brennan Center, um centro de estudos estratégicos da Universidade de Nova York, identificou 135 poderes estatutários que são atribuídos ao presidente quando este declara uma emergência nacional. Estes incluem coisas como o poder de congelar as contas bancárias dos americanos ou, sob uma lei que concede ao presidente poderes de emergência sobre as comunicações, aprovada em 1942, encerrar a internet (o que, felizmente, seria bastante difícil na prática). Em teoria, o Congresso deve rever e potencialmente revogar as emergências declaradas pelo presidente após 6 ou 12 meses. Na prática, a Câmara age com casualidade para restringi-las. Há mais de 40 emergências atualmente em vigor. Algumas delas têm mais de uma década.

Em tempos de guerra, os poderes de emergência foram usados para fechar jornais (sob Woodrow Wilson), para suspender o direito a um julgamento antes da prisão (Franklin Roosevelt) e para justificar a vigilância de americanos e a tortura de estrangeiros (George W. Bush). Mas muitos destes poderes podem ser usados mesmo quando a ameaça ao país é remota. Uma emergência é uma emergência quando o presidente diz que este é o caso e seus advogados concordam. A maioria das emergências é declarada para mobilizar recursos federais quando ocorre um desastre natural – que é como o poder deveria funcionar. Mas, conforme a aprovação de leis se tornou mais difícil, os presidentes consideraram este atalho tentador demais para deixá-lo inexplorado. O muro de Trump na fronteira foi construído sob autoridade emergencial. O perdão da dívida estudantil do presidente Joe Biden, que até agora custou 0,6% do PIB, também foi adotado sob autoridade presidencial de emergência.

No entanto, os presidentes Windrip, Scudder e Lindbergh tinham em mente algo mais sinistro do que a construção de muros ou o perdão de empréstimos estudantis quando tomaram o poder. Para chegar mais perto dos pesadelos imaginados nesses romances, provavelmente serão necessárias tropas nas ruas. Também aqui o passado deixa de ser totalmente tranquilizador. Houve cerca de 70 ocasiões na história americana em que governos estaduais ou locais declararam lei marcial. Apesar de algumas preocupações contemporâneas quanto à possibilidade de uma repetição disso, o que mais chama a atenção nessa variante do poder de emergência é o quanto ela saiu de moda. A última vez que a lei marcial foi declarada foi em Cambridge, Maryland, em 1963, para reprimir uma agitação depois que um cinema forçou os espectadores negros a se sentarem nas últimas filas do andar de cima. A Guarda Nacional de Maryland permaneceu nas ruas por um ano.

INSURREIÇÃO. Hoje em dia é difícil imaginar o envio de tropas e a suspensão de liberdades em solo americano por parte do governo federal. No entanto, se um presidente tirânico quisesse fazê-lo, teria o poder de enviar tropas sob a Lei da Insurreição. Essa lei, datada de 1807, dá ao presidente autoridade para mobilizar o Exército ou a Marinha no caso de uma revolta interna ou quando a lei federal estiver sendo ignorada. A lei afirma que isso pode ser feito quando for lícito, sem definir o que isso significa. “É uma arma carregada para qualquer presidente. Praticamente não há restrições”, diz Jack Goldsmith, ex-procurador-geral e atual estudioso do poder presidencial que faz parte de um esforço para reformar a lei.

Armado com a Lei da Insurreição, o que um presidente determinado e maligno poderia fazer? A lei foi usada para coibir greves, para reverter a segregação no Sul dos EUA e, sob George H. W. Bush, foi invocada durante distúrbios raciais em Los Angeles em 1992. Trump pode ter considerado usá-la em 2020, quando alguns protestos se tornaram violentos depois que a polícia em Minneapolis matou George Floyd, um suspeito negro algemado. No fim, apesar do apelo de um senador republicano para que o fizesse, ele hesitou. “Trump entendeu que a Lei da Insurreição é uma coisa do tipo ‘quebre o vidro em caso de emergência’”, diz um antigo funcionário do alto escalão do governo Trump. “E, seja como for, o Departamento de Defesa não está com pressa de operar contra os cidadãos americanos.”

Os contemporâneos de Trump na Academia Militar de Nova York, que ele frequentou quando adolescente, recordam exercícios, sadismo ocasional e votos para o “homem do ano” da escola – a primeira eleição que Trump ganhou. O lugar atraía pais ricos que achavam que seus filhos poderiam se servir de alguma disciplina militar. Também foi defendido pelos ditadores latino-americanos que presumivelmente pensavam que os seus descendentes aprenderiam lições valiosas no exercício da autoridade.

O antigo e talvez futuro presidente ignorou resultados eleitorais dos quais não gosta, incentivou a violência das multidões e ponderou sobre a utilização da Guarda Nacional para deportar milhões de imigrantes que estão ilegalmente no país. Seus discípulos estão mais bem preparados para a presidência dele do que antes. Não há um limite claro para o que o partido dele aceitará. Isso, por sua vez, significa que alguns democratas estão preparados para ignorar as normas para impedi-lo de regressar ao poder, uma dinâmica que, descontrolada, conduz à destruição mútua.

E, no entanto, os estudiosos do declínio democrático – graças ao 45.º presidente, um campo do saber em expansão – salientam que os momentos mais perigosos para um governo popular ocorrem durante uma crise, que um presidente pode explorar para tomar poderes extraordinários dos quais se recusa a abrir mão posteriormente.

Quando confrontado com duas dessas crises durante a sua presidência – a covid-19 e os protestos nacionais após o assassinato de Floyd –, Trump recuou para o modo de comentarista, apontando o péssimo trabalho que todos os outros estavam fazendo. Mesmo os seus piores atos como presidente, como a pressão sobre o secretário de Estado da Geórgia para encher as urnas com cédulas em seu nome, foram mais um caos improvisado do que uma subversão astuta. Ele se perguntou em voz alta sobre atirar em manifestantes em 2020, mas não o fez. Um déspota futuro mais disciplinado (ou uma versão mais maligna de Trump), no entanto, teria amplo espaço para subverter a democracia dos EUA. Parcialmente por uma questão de projeto, os Estados Unidos não são à prova de ditadores.

ARTIGO 1114

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