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Um mercado brasileiro de ‘municipal bonds’

Havendo regras mínimas de ‘chinese wall’ (separação entre emissor e partes relacionadas), o restabelecimento desse mercado pode ser um ganha-ganha

Por Marcelo Guterman*, O Estado de S. Paulo, 06/09/2023

Em interessante artigo publicado em junho deste ano, o ex-secretário de Finanças de Curitiba Vitor Puppi defende a criação de um mercado de títulos emitidos por entes subnacionais, a exemplo dos municipal bonds nos Estados Unidos (O Brasil cobra caro do Brasil, Estado, 25/6, A4). A tese é de que os bancos, inclusive e principalmente os públicos, cobram taxas de juros extorsivas dos municípios, e um mercado de títulos municipais poderia reduzir o custo do crédito para estes entes.

Antes de mais nada, é preciso entender por que, afinal, não existe um mercado de municipal bonds no Brasil. Na verdade, esse mercado existia até meados da década de 1990. No esforço por colocar a casa fiscal em ordem, condição necessária para o sucesso do Plano Real, a União consolidou e renegociou todas as dívidas de Estados e municípios, o que incluía os títulos mobiliários eventualmente emitidos. Foram cerca de R$ 600 bilhões (em dinheiro de hoje) dos Estados, e cerca de 10% desse montante dos municípios. Isso representa algo como 8% de toda a dívida pública atual. A partir de então, os entes subnacionais foram proibidos de emitir dívida no mercado mobiliário, podendo somente tomar empréstimos no sistema bancário. Essa proibição teve um motivo: a emissão de títulos permitia toda sorte de manobras, incluindo a sua aquisição pelos bancos estaduais ou outras partes relacionadas. Os Estados se tornaram quase emissores de moeda, contribuindo para o completo descontrole fiscal que levou o País à hiperinflação.

Mais de duas décadas se passaram desde que se estabeleceu essa proibição, o Brasil é outro em termos de controle e transparência fiscal e a discussão sobre o restabelecimento de um mercado de municipal bonds faz sentido. Mas uma regra fundamental deve ser estabelecida, antes de mais nada: as eventuais emissões de Estados e municípios não poderiam, em hipótese alguma, ser adquiridas por estatais estaduais ou municipais ou pelos Regimes Próprios de Previdência Social (RPPS). É fácil de entender por quê: entidades controladas pelo próprio emissor dos títulos poderiam adquiri-los não no melhor interesse de seus stakeholders (os participantes dos fundos de pensão, por exemplo), mas no exclusivo interesse do controlador, aquele que emite o título.

Essa regra deveria valer não somente para os títulos emitidos pelo próprio Estado ou município controlador da parte relacionada, mas para emissões de quaisquer Estados e municípios, de modo a evitar o chamado chumbo trocado entre entes subnacionais. E, é claro, essa regra deve ser complementada com os usuais limites prudenciais de endividamento dos entes subnacionais.

Se a condição acima for cumprida, um mercado de municipal bonds poderia ser restabelecido no Brasil. Receio, no entanto, que, sob essas condições, este mercado não será o “almoço de graça” descrito pelo ex-secretário em seu artigo. O mercado financeiro, de maneira geral, é arbitrado, ou seja, não existem diferenças relevantes de preços para o mesmo ativo negociado em dois mercados diferentes sob as mesmas condições. Vitor Puppi compara o custo do dinheiro para a Americanas (124% do CDI) com o custo do dinheiro para um município de Minas Gerais (230% do CDI). Segundo o ex-secretário, essa diferença não faz sentido, em razão do que ocorreu com a varejista, comparado com a solidez de um município que arrecada impostos de maneira contínua e segura.

Para quem milita no mercado financeiro, essa comparação, obviamente, não faz sentido. A Americanas foi vítima de uma fraude, de modo que o balanço no qual os bancos se basearam para emprestar dinheiro a 124% do CDI era falso. Por outro lado, os bancos sabem que os entes subnacionais estão sujeitos a ciclos políticos, além de terem suas arrecadações dependentes de fatores exógenos, como ciclos econômicos e eventuais choques, como o fechamento de uma fábrica localizada no município, por exemplo. Deste modo, o município de Minas Gerais citado pelo ex-secretário provavelmente não conseguiria colocar os seus títulos num mercado formado por investidores profissionais por uma taxa muito abaixo dos 230% do CDI cobrados pela Caixa Econômica Federal. A não ser que o banco público esteja se aproveitando de sua posição quase monopolista para praticar preços acima do mercado. Neste caso, um mercado de municipal bonds poderia ser útil para colocar essa hipótese à prova. Ou, como dizemos no mercado, para “arbitrar o preço”.

A discussão sobre a criação de um mercado de municipal bonds é válida e o caminho natural, na medida em que o mercado de capitais se aprofunda e a governança dos entes subnacionais se aprimora. Inclusive, sob o escrutínio do mercado de capitais, Estados e municípios teriam vantagem em tornar os seus números ainda mais transparentes e confiáveis, de modo a merecerem emitir com taxas de juros mais baixas. Desde que se cuide de haver regras mínimas de chinese wall (separação entre emissor e partes relacionadas), o restabelecimento desse mercado pode ser um ganha-ganha.

*Engenheiro e Analista Financeiro.

ARTIGO959

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