Um país entre a fé e o fuzil
Maria Cristina Fernandes, Jornal Valor Econômico, 25/08/2023
Em novo livro, Bruno Paes Manso conta como o encontro entre a fé pentecostal e o crime organizado moldou a vida, a política e a economia na periferia das grandes cidades
Em 2020, no auge das medidas de isolamento social da pandemia, surgiu, em cima de uma caixa d’água da Cidade Alta, comunidade da zona norte do Rio, uma estrela de Davi ao lado da bandeira de Israel. O símbolo, iluminado em neon azul, podia ser visto por quem passasse pela avenida Brasil. Transformou-se num marco do “Complexo de Israel”, denominação que passou a ser dada a cinco favelas (Cidade Alta, Vigário Geral, Parada de Lucas, Cinco Bocas e Pica-Pau) que reúnem uma população de 134 mil pessoas.
Uma estátua de santa Edwiges, que dá nome à paróquia local, foi destruída, bem como os terreiros de umbanda e candomblé da região. Moradores que passavam pelos jovens armados à entrada do complexo ouviam um “paz do Senhor” em vez de “bom dia”. As mudanças naquela comunidade, que ganhou projeção há 30 anos com a chacina de Vigário Geral, responsável pela morte de 21 pessoas, foram promovidas pelo traficante Álvaro Santa Rosa, de 37 anos, conhecido como “Peixão”.
Convertido à Assembleia de Deus Braços Abertos, de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, “Peixão” voltou à zona norte e adaptou sua fé ao tráfico, adotando o codinome de Aarão, irmão de Moisés bíblico. Ao se deparar com a história de Santa Rosa, contada por Viviane Costa em “Traficantes evangélicos: Quem são e a quem servem os novos bandidos de Deus” (Thomas Nelson, 2023), Bruno Paes Manso descobriu um mundo muito distinto das conversões que conhecia até então.
O jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP mantinha contato havia duas décadas com ex-traficantes e ex-matadores da zona sul de São Paulo, cuja conversão a religiões pentecostais exigia submissão a autoridade, obediência às leis, autocontrole e disciplina. De seu mergulho para entender o que o encontro entre a fé pentecostal e a violência produziu, surgiu “Fé e fuzil” (Todavia, 2023), a ser lançado em setembro.
Em “A guerra: A ascensão do PCC e o mundo do crime no Brasil”, escrito com Camila Nunes Dias em 2018, o autor traçou a gênese da maior organização criminosa do país, e em “A república das milícias”, de 2020, mostrou como os milicianos tomaram a República. Neste novo livro, Bruno Paes Manso busca entender como a conversão – do domínio das tentações de ex-criminosos ao discurso forjado da luta do bem contra o mal permite a conquista e subjugação de territórios.
O leitor acaba convencido de que, sem entender ambos os fenômenos, que se espraiam há décadas pelas periferias das grandes cidades, já não se dá conta dos novos moldes da política e do poder no país. O conceito que permeia o livro é o da “metanoia”. A tradução lateral do termo, de origem grega, é arrependimento. Explica uma mudança de comportamento e de convicções que não decorre de ameaça de punição ou pressão social, mas de uma nova crença que, há décadas, prospera no terreno da insegurança e do alijamento social das periferias.
O livro compila as estatísticas: até os anos 1980, nove em cada dez brasileiros eram católicos e 5,6%, evangélicos. No último dado, de 2019, a proporção era de 31,5%, puxada pelos pentecostais. Se o ritmo de crescimento se mantiver, serão maioria em 2040. O número de templos multiplicou por seis em 42 anos e hoje é 14 vezes maior que o número de igrejas. Chegou a 178 mil em 2022. Na última década, abriram-se 21 novos templos por dia. A proporção de evangélicos é superior à média nacional no Rio, no Espírito Santo, em Rondônia, Roraima, Acre e Amazonas, e inferior no Nordeste. São Paulo fica no meio do caminho. Entre os fiéis, 58% são mulheres; 59%, pardos e pretos (proporção superior até que a das religiões de matriz africana); 48% têm renda até dois salários mínimos e 35% estudaram até o ensino fundamental.
Quando Marcelo Vitor de Souza, o personagem que abre o livro, converteu-se à Igreja do Evangelho Quadrangular no bairro do Capão Redondo, na zona sul de São Paulo, passou a dividir os hábitos desta comunidade e abandonou a renda que o crime lhe proporcionava. Bruno Paes Manso o conhecera em 1994, quando “Marcelinho”, depois de sobreviver a um atentado de 12 tiros, tornou-se sua fonte sobre o crime organizado na periferia de São Paulo.
Filho de migrantes de Minas Gerais marginalizados na cidade grande, abandonado pela mãe e descuidado pelo pai alcoólatra, criou-se no lixão, entrou em gangues juvenis e destas, para o tráfico. Convertido, negociou um armistício com potenciais algozes e montou um centro para a recuperação de viciados.
Foi a partir daquele extremo sul de São Paulo que começou a redução de homicídios que fez do estado o detentor do mais baixo índice do país. “Como numa metanoia gradual, o pensamento dos matadores ia sendo desconstruído, ficando para trás, tornando-se ultrapassado. Em seu lugar era formada uma nova consciência e consolidada uma nova ética no mundo do crime”, escreve Bruno Paes Manso. Mais do que o pentecostalismo, porém, o que parece estar por trás desta redução da violência é a necessidade de as atividades econômicas em que o crime organizado se infiltrou precisarem de uma trégua com a matança para serem normalizadas e poderem se expandir.
Para entender o avanço do pentecostalismo e sua apropriação por realidades tão distintas quanto a de Marcelo Vitor de Souza e os “traficrentes”, Paes Manso valeu-se não apenas de leituras e entrevistas, mas da imersão em estudos bíblicos promovida por cursos online para formação de pastores. Descobriu que seus colegas nem sempre dominavam a língua portuguesa, mas transitavam com facilidade por termos como “exegese” e “hermenêutica”.
Se não lhe pareceu difícil compreender a conversão de suas antigas fontes que deixaram o crime, o discurso daqueles que manipulavam a religião para justificar a violência e a tirania sobre comunidades, como “Peixão”, lhe deu mais trabalho. Para saber onde estava pisando, mergulhou em Deuteronômio 32, 41-4 (“Quando eu afiar minha espada fulgurante e minha mão agarrar o Direito, tomarei vingança do meu adversário e retribuirei àqueles que me odeiam”), do Livro dos Provérbios, 19, 19 (“O homem violento se expõe ao castigo; se tu o poupas, aumentarás o mal dele”) ou mesmo do Êxodo, 22, 1 (“Se um ladrão for surpreendido arrombando um muro, e sendo ferido morrer, quem o feriu não será culpado do sangue”).
Deste mergulho, Paes Manso traçou as bases da coabitação entre “traficrentes” e pentecostais efetivamente convertidos: “O movimento moderno da batalha espiritual permitia esse salto: as mesmas forças diabólicas que estavam dentro de cada um, soprando conselhos errados e causando impulsos inconfessáveis, estavam no inimigo público, o outro a ser derrotado nos territórios e nas instituições”.
A comunhão, transposta para a política da bala e da bíblia também explica como as duas bancadas no Congresso passaram a se apoiar nas suas respectivas pautas. O autor lembra como, em 2019, os evangélicos foram decisivos para a aprovação, pela Câmara, do projeto de lei que flexibilizava o Estatuto do Desarmamento. Da mesma maneira, os parlamentares ligados às forças de segurança cerraram fileiras em defesa da pauta de costumes. Ambos ungiram o ex-presidente Jair Bolsonaro como comandante de uma guerra santa onde não faltaram “marchas para Cristo” com réplicas de armas de fogo e pastores que adotaram gestos de “arminha” nos púlpitos.
Bolsonaro foi derrotado, mas esta aliança permanece, tanto na sua esfera pública e institucional do Congresso Nacional, como naquela que permeia a vida das comunidades. “Peixão” está foragido, mas não é o único “traficrente” do Rio. O chefe do tráfico do Morro do Dendê, na Ilha do Governador, Fernando Guarabu, morto em 2019, tinha uma tatuagem com o nome de Jesus no braço direito e era sócio de um grupo de milicianos, o Escritório do Crime, do qual foi integrante Adriano da Nóbrega, o ex-PM morto em 2020 depois de uma relação de décadas com a família Bolsonaro.
Se a aliança da extrema direita com os pentecostais arrisca sobreviver a Bolsonaro, a esquerda custa a encontrar um antídoto desde que a Teologia da Libertação bateu em retirada. Das explicações buscadas por Paes Manso para o embate, a melhor é a do ex-presidente da Central Única das Favelas, Preto Zezé: “O pessoal da favela já é doutor em desgraça (…). Já os pastores estão lá, dizendo para o desgraçado que ele é tudo pra Jesus. Se eu estou numa situação de abandono, eu me agarro”.
O lulismo hoje se divide entre aqueles que acreditam que uma ação civilizatória do Estado conterá a expansão do pentecostalismo e aquela que se limita a disputar o apoio dos pastores. Entre os dois times estão aqueles que comparam o público da Marcha das Margaridas, em Brasília, com a Marcha para Jesus, no Rio, promovida pelo pastor Silas Malafaia sem o mesmo apelo dos tempos de Bolsonaro no poder.
Não chegam a ser visões excludentes, mas tampouco dão conta das pontas soltas desta história. Vide a ameaça de a extrema direita religiosa nos Estados Unidos devolver o ex-presidente Donald Trump ao poder. A volta de Bolsonaro hoje encontra obstáculos na justiça, mas tem um apoio resiliente de uma fatia do eleitorado que, a exemplo da pregação pentecostal, vê no acúmulo de riquezas – e joias – uma proteção divina.
ARTIGO956