Uma Constituição para novos tempos
Nova Constituição do Chile selará o fim de um sombrio capítulo da história do país.
Notas & Informações, O Estado de S.Paulo – 27 de outubro de 2020 | 03h00
No domingo passado, os chilenos manifestaram de forma inequívoca o desejo de repactuar a organização do Estado e sua relação com a sociedade. Em plebiscito que registrou alta participação popular, quase 80% dos cidadãos votaram a favor do “Apruebo”, ou seja, pela elaboração de uma nova Constituição que substitua a anacrônica Carta Política que vigora no Chile há 40 anos, marco constitucional da ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990).
O anseio da sociedade chilena por uma Constituição que traduza os novos tempos ficou patente durante as grandes manifestações que abalaram o Chile há pouco mais de um ano. A convocação do plebiscito – previsto inicialmente para abril, mas adiado em função dos riscos impostos pela pandemia – foi uma das formas que o presidente Sebastián Piñera encontrou para arrefecer os ânimos e se sustentar no poder até o final de seu mandato, em dezembro do ano que vem, e, quem sabe, fazer seu sucessor.
Ao votar a favor de uma Constituição que seja fruto de um novo pacto social, a sociedade chilena busca enterrar de vez um dos últimos resquícios de um sombrio capítulo da história recente de seu país. Em outro plebiscito, realizado em 1988, os chilenos já haviam decidido pelo fim da ditadura de Augusto Pinochet, mas foram necessários pouco mais de 30 anos para que fosse dado o passo seguinte, a consagração do Estado Democrático em um texto constitucional.
Também por folgada maioria (79%), os chilenos decidiram que a Constituição que passará a vigorar a partir do ano que vem advirá de uma Assembleia Constituinte exclusiva, e não de uma convenção mista formada metade por constituintes eleitos e metade por parlamentares que já exercem mandato. “Adeus transição, adeus ditadura, adeus Constituição escrita por pessoas fechadas em uma sala”, disse ao Estado a enfermeira Jéssica Barría. O sentimento de júbilo marcou as celebrações pelo resultado das urnas em todo o país.
A Assembleia Constituinte do Chile será a primeira em que haverá paridade de gêneros – 50% homens, 50% mulheres. Não há precedentes de divisão assim na história parlamentar. Em março, o Congresso chileno aprovou uma lei que garante a igualdade de representação entre homens e mulheres na redação do novo texto constitucional caso o “Apruebo” saísse vitorioso do plebiscito, como, de fato, ocorreu. A ação do Poder Legislativo, antes da consulta popular, já foi uma resposta institucional às demandas gritadas nas ruas. As desigualdades sociais e econômicas e a disparidade de tratamento por gênero no Chile foram dois dos temas mais presentes na pauta de reivindicações da sociedade durante as manifestações entre outubro de 2019 e março deste ano.
A eleição dos constituintes, próximo passo desse movimento de renovação política, está prevista para o dia 11 de abril de 2021. Eles terão entre nove meses e um ano para redigir a nova Constituição. Ao final dos trabalhos, um novo plebiscito será realizado para que os chilenos decidam se aprovam ou não o novo texto constitucional. “Até agora, a Constituição tem nos dividido. A partir de hoje (domingo), todos devemos colaborar para que a nova Constituição seja um grande marco de unidade, estabilidade e futuro”, declarou o presidente Sebastián Piñera assim que foi confirmada a vitória do “Apruebo”.
É este o espírito de uma Constituição, o documento que estabelece os limites da atuação do Estado e ao qual todos os cidadãos estão igualmente submetidos em nome do bem comum. A redação da nova Carta já começará com a escolha dos constituintes. Os chilenos terão a oportunidade de escolher quais os direitos e quais os deveres pretendem privilegiar neste novo pacto.
A nova Constituição será boa ou ruim a depender dos olhos de quem a leia no futuro. Alguns interesses podem ser contemplados no novo texto, outros não. Mas é inegável que se está diante de um avanço quando este tipo de definição advém da vontade popular.
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