Uma em cada 3 cidades do País tem risco de desastre climático
Lista não inclui todas as cidades gaúchas assoladas por tragédia
Por Paula Ferreira, Márcio Dolzan, José Maria Tomazela, O Estado de S. Paulo, 17/05/2024
Um levantamento do governo federal mostra que pelo menos 1.942 municípios do Brasil estão localizados em áreas de risco recorrente para desastres climáticos como inundações, enchentes e deslizamentos de terra. O número, porém, ainda é subestimado, considerando que o documento lista, por exemplo, apenas 142 cidades gaúchas. Na tragédia que assola o Rio Grande do Sul neste momento, 450 municípios já foram impactados pelas fortes chuvas, segundo dados da Defesa Civil do Estado.
Os números constam de nota técnica da Secretaria Especial de Articulação e Monitoramento, órgão vinculado à Casa Civil. Eles se baseiam na base de dados do Atlas de Desastre e Sistema Integrado de Informações sobre Desastres, que compilou eventos entre 1991 e 2022. Assim, não considera os desastres mais recentes provocados pelo clima, em especial no Sul do País.
Entre as localidades estão regiões como São Sebastião, no litoral paulista, que sofreu com fortes chuvas e deslizamentos em 2023, e Petrópolis, no Rio, que passou pelo mesmo problema em 2022. Atualmente, o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) conta com equipamentos de monitoramento de chuvas em 1.133 municípios brasileiros. A previsão é de que eles sejam instalados nas 1.942 cidades listadas até o fim de 2027.
O documento que mapeia as cidades, segundo a Casa Civil, tenta atender a uma “necessidade de atualização da lista de municípios com evidências de maior criticidade quanto à ocorrência de desastres naturais relacionados ao clima”. A metodologia foi atualizada e passou a contabilizar localidades a partir dos seguintes critérios: ter óbito registrado relacionado a desastres entre 1991 e 2022; ter 10 registros, ou mais, de desastres entre 1991 e 2022; apresentar o número de 900 pessoas, ou mais, desalojadas/desabrigadas no período de 1991 a 2022; apresentar o número de 500 pessoas, ou mais, identificadas em áreas mapeadas com risco geo-hidrológico; apresentar alta vulnerabilidade a inundações, segundo o Atlas de Vulnerabilidade a Inundações da ANA (2014); apresentar 400 dias de chuvas, ou mais, acima de 50 mm, de 1981 a 2022, que corresponde a uma média de 10 dias por ano.
Nos 1.942 municípios mapeados vivem 148,8 milhões de pessoas, o equivalente a 73% da população. O dado, no entanto, não representa o total da população em risco, mas o total de moradores das cidades que possuem uma ou mais áreas com algum grau de risco para desastres ligados ao clima. No período de 1991 a 2022, essas cidades registraram 3.890 mortes em 16.241 desastres, o que deixou 7,9 milhões de desabrigados/desalojados.
A quantidade de pessoas em área de risco geo-hidrológico totaliza 8,9 milhões, de acordo com o documento. Na Bahia, o porcentual de pessoas em área de risco em relação ao total de moradores das cidades destacadas como vulneráveis chega a 17,3%, porcentagem que é de 13,8% no Espírito Santo e 11,6% em Pernambuco.
“Quando a gente pensa em qualquer plano, qualquer sistema, para reduzir o risco de desastres, a gente precisa ter um monitoramento. Aqui no Brasil os desastres são deflagrados por chuvas demais, que vão causar as enxurradas, as inundações, os alagamentos, as enchentes. Você precisa, obviamente, ter uma informação a priori, antes que o evento aconteça, para que vidas sejam salvas”, afirma Regina Alvalá, coordenadora do Cemaden.
“O Cemaden tem essa missão de monitorar e alertar, e quanto mais antecipado for o alerta emitido, mais ele pode ser útil lá na ponta, lá no município, (para) as defesas civis se prepararem, retirarem as populações daquelas áreas que são mais críticas para o impacto desses eventos e salvar vidas”, afirma ela. Apesar de menos de 1/5 dos municípios brasileiros terem equipamentos para monitoramento das chuvas, o Cemaden ressalta que todos os 5.568 são acompanhados por meio de um sistema de cruzamento de dados. Isso permite que o órgão faça alertas diários sobre riscos de chuvas mais fortes.
HISTÓRICO. O mapeamento de cidades sob risco começou a ser feito no início de 2011, após as fortes chuvas que atingiram a cidade de Teresópolis, na Região Serrana do Rio. Considerada a maior catástrofe de origem geo-hidrológica do Brasil, a tragédia provocou mais de 900 mortes e deixou pelo menos 350 pessoas desaparecidas, além de milhares de desabrigados. O impacto daqueles eventos impulsionou a criação de políticas públicas voltadas aos desastres climáticos, como a criação de um Plano Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNDC). O plano está previsto em lei federal desde 2012, mas até hoje não saiu efetivamente do papel.
“Um sistema de redução de riscos tem de contemplar outros eixos também. Então, os municípios precisam ter os seus planos de prevenção, os seus planos de preparação, os seus planos de contingência”, diz Regina Alvalá. “É o município que tem de saber onde estão as encostas para poder fazer obras de contenção, desassorear os rios, não deixar bueiro entupir, recolher lixo. Há várias ações estruturais e não estruturais que as Defesas Civis e os municípios devem priorizar como parte integrante de qualquer sistema de redução de riscos de desastres.”
REALOCAÇÃO. Em São Sebastião, no litoral norte de São Paulo, que foi cenário de uma tragédia em fevereiro de 2023, com a morte de 64 pessoas em deslizamentos de encostas após chuvas intensas, a Procuradoria-Geral do Estado (PGE) obteve liminar da Justiça para a remoção das famílias e demolição de 893 casas. A cidade tem 81,5 mil habitantes e cerca de 4 mil seriam afetados. A prefeitura conseguiu evitar o despejo em massa se comprometendo a realizar obras de proteção contra deslizamentos. A ação foi suspensa.
A decisão da Justiça implicaria total transferência da Vila Sahy, a comunidade mais afetada, onde 45 casas foram destruídas pelo desastre e não serão reconstruídas no mesmo local. Outros seis prédios foram demolidos por causa de avarias. Também foi autorizada a demolição de 197 moradias que foram desocupadas espontaneamente pelos moradores. Conforme os levantamentos mais recentes, apenas na Vila Sahy são 354 imóveis em risco muito alto e 34 em situação de alto risco.
Dois empreendimentos habitacionais vão atender 704 famílias. Outras 303 estão alojadas provisoriamente na cidade de Bertioga. Associações de moradores se opõem às transferências. Para reduzir o risco, a prefeitura investe R$ 193 milhões em obras de contenção, como barreiras de pedra conhecidas como gabiões, para frear deslizamentos. O pacote de obras emergenciais inclui sistemas de drenagem e contenção de taludes com placas e escada hidráulica para o escoamento da água.
Em Juquehy, outro bairro atingido, a prefeitura constrói um canal hidráulico com muro de gabião para direcionar as águas que descem dos morros. A catástrofe deixou também mais de 600 cicatrizes nas encostas da Serra do Mar. Em outubro do ano passado, o Instituto de Conservação Costeira (ICC), em parceria com a Atlântica Consultoria Ambiental e a multinacional Ambipar Group, iniciou um projeto de restauro ecológico das áreas florestais degradadas pelos deslizamentos espalhando biocápsulas de sementes com o uso de drones.
O ICC realiza ainda, em conjunto com a prefeitura, o programa São Sebastião Resiliente, que prevê, entre outras medidas, um cinturão de áreas de proteção ambiental e parques verdes para absorver a água da chuva.
NO RIO. Em Petrópolis, com 278,8 mil habitantes, um bairro com 245 casas foi demolido pela prefeitura depois das enchentes de 2022, que causaram deslizamentos e deixaram 235 mortos. O Morro da Oficina praticamente desapareceu, mas ainda há cerca de 70 mil pessoas vivendo em áreas de risco, segundo estudo do Ministério das Cidades, divulgado em fevereiro deste ano. As áreas em risco correspondem a 18% da área urbana. O número é superior ao apurado em 2017 pelo Plano de Redução de Riscos e Movimentos de Massa, que apontava 40 mil pessoas vivendo em 234 áreas de risco. Foram mapeados 27 mil imóveis, correspondendo a 10% da área urbana. Desses, 15,2 mil estavam em áreas de risco alto ou muito alto.
Depois de registrar enchentes e 775 deslizamentos de terra, em 2022, a prefeitura deu início a um processo de demolição das moradias em locais de risco, mas uma ação da Defensoria Pública do Rio de Janeiro barrou o processo.
A Justiça entendeu que as demolições deveriam ser precedidas de notificação ao proprietário e estudo caso a caso. No caso do Morro da Oficina, a demolição foi autorizada pela Justiça por necessidade de realizar obras emergenciais de contenção da encosta, drenagem e proteção de moradias e edifícios públicos, entre eles uma escola municipal e um pronto-socorro.
As famílias recebem uma compensação financeira de até R$ 230 mil prevista no programa Recomeço Seguro. Em outros bairros, como a Vila Felipe, a prefeitura investe na construção de barreiras dinâmicas, sistemas de drenagem e demolições de blocos rochosos para prevenir novos desastres.
Petrópolis registra um histórico de desastres climáticos. Antes da tragédia de 2022, a maior já registrada, a cidade havia sido assolada por grandes inundações em 1966, com 80 vítimas, e 1988, com um saldo de 171 mortes. Em 2001, os temporais fizeram 51 vítimas; em 2011, os deslizamentos mataram 73 pessoas e, em 2013, foram 13 mortes.
RIO GRANDE DO SUL. O Estadão mostrou que ao menos quatro cidades que foram severamente atingidas pelas enchentes do Rio Grande do Sul planejam mudar parte da área urbana para fora da região sujeita a inundações. São localidades de pequeno porte, situadas em calhas de rios, e que enfrentaram de dois a quatro desastres naturais em menos de um ano.
Especialistas afirmam que outras cidades precisam seguir os exemplos de Barra do Rio Azul, Muçum, Roca Sales e Cruzeiro do Sul e não reerguer as estruturas destruídas no mesmo lugar. Para eles, com as mudanças climáticas, novas enchentes virão.
RECURSOS. Em nota, o Ministério das Cidades destacou que foi criado o “PAC Prevenção a Desastres, com investimentos previstos de R$ 11,7 bilhões”. “Na semana passada, na primeira seleção de Contenção de Encostas, foram anunciados investimentos de R$ 1,7 bilhão. Nas próximas semanas, será anunciado o resultado da primeira seleção de Drenagem, com investimentos de R$ 4,8 bilhões”, declarou a pasta.
“Em relação ao orçamento do Ministério das Cidades, vale ressaltar que o valor deixado pelo governo anterior para prevenção de riscos em 2023, antes da PEC da Transição, era de R$ 27 milhões, insuficiente sequer para manter as obras em execução. Após a PEC da transição, o orçamento de 2023 foi ampliado e, nesse exercício de 2024, primeiro orçamento do governo Lula, o valor alocado para obras de prevenção a desastres foi de R$ 636 milhões, montante que corresponde ao dobro da média do orçamento alocado nos últimos 6 anos”, acrescentou.
A reportagem consultou o Ministério do Meio Ambiente, que não comentou, e o da Integração e Desenvolvimento Regional, que encaminhou a demanda à pasta das Cidades.
ARTIGO1136