‘Violência faz Brasil viver processo descivilizatório’
Professor da Universidade de Cambridge acredita ser possível reduzir pela metade a violência homicida em 30 anos no mundo. Para isso, o foco terá de ser a América Latina, que concentra 17 dos 20 países mais violentos do planeta, entre eles o Brasil. Ao ‘Estado’, ele falou sobre políticas na área da segurança e criticou a intervenção no Rio
Marco Antônio Carvalho, O Estado de S.Paulo – 17 de Fevereiro de 2018
O professor suíço Manuel Eisner, de 58 anos, tem uma mensagem que pode parecer exótica para os brasileiros: o mundo está ficando menos violento. Como diretor do Centro de Estudos da Violência da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e estudioso das causas e consequências da violência em diferentes sociedades, ele vai além: o mundo pode reduzir o atual nível de homicídios pela metade em 30 anos. Para isso, é fundamental contar com o engajamento de países da América Latina, onde estão 17 das 20 maiores taxas nacionais de assassinatos. Junto dos vizinhos, o Brasil pertence a uma concentração de violência que não encontra similar em todo o mundo, e está vendo a situação piorar. É um processo de descivilização, comenta Eisner. Para começar a reverter a situação, as estratégias elaboradas pelo professor em parceria com a Organização Mundial da Saúde (OMS), da Organização das Nações Unidas (ONU), preveem, primeiro, um “estado de direito efetivo”, com combate à corrupção de oficiais públicos, aprimorando a legitimidade por meio de instituições inclusivas. Segundo, deve-se contar com a atuação de coalizões de lideranças visando a enfatizar a civilidade e o respeito. De forma mais específica, ele pede mudanças no sistema de justiça criminal, com ataque à impunidade nos casos de homicídio, por exemplo. Eisner diz duvidar da eficácia da intervenção federal no Rio, assim como de projetos como os que estão em discussão no Congresso Nacional, como mais armas nas ruas e penas mais longas para criminosos: “Assegurar-se que a punição seja justa, provável e rápida importa muito mais.” Leia abaixo a entrevista concedida ao Estado:
O que leva o senhor a acreditar que é possível reduzir o índice mundial de assassinatos pela metade em 30 anos? Pelo mundo, muitas sociedades foram bem sucedidas em reduzir substancialmente a violência, especialmente o homicídio, nos últimos 30 para 40 anos. Com frequência, essas reduções chegam a 60-80% – o que significa que os cidadãos vivem com melhor segurança nas suas vidas cotidianas. Isso inclui, por exemplo, Cingapura, Itália, Estados Unidos e Rússia. O que eles fizeram corretamente? E como podemos aprender com eles? Na maioria dos países, a queda nos homicídios foi uma parte de uma tendência mais abrangente, incluindo quedas nos crimes patrimoniais, bullying nas escolas, abuso de álcool e casos de gravidez na adolescência. Em outras palavras, o comportamento da população jovem melhorou em vários aspectos. Uma possível razão é autodisciplina, planejamento de longo prazo e um senso cívico de responsabilidade encorajado em casa, nas escolas e na vizinhança. Também em vários países parece que a combinação de tecnologias de segurança com a melhoria no policiamento desempenhou um importante papel.
Por outro lado, onde o mundo ficou mais violento? A maior parte do mundo passou por uma queda nos homicídios ao longo das três últimas décadas. A única exceção foi a América Latina, onde vários países vivenciaram uma dramática queda na segurança pública diante de já altos níveis de violência existentes. Como resultado desses padrões, 17 dos 20 países mais violentos do mundo estão hoje na América Latina. Por quê? Não há resposta simples. Mas fatores que contribuem para essa mistura tóxica incluem a herança de décadas de política violenta e ditatorial, o efeito devastador do tráfico de drogas, a deportação de um grande número de criminosos pelos Estados Unidos para a América Central, a fraqueza do Estado, e os altos níveis crônicos de desigualdade.
O Brasil ultrapassou a marca das 61 mil mortes violentas em 2016. No ano seguinte, viveu uma crise carcerária com massacres que somaram mais de 170 assassinados em uma disputa entre facções rivais. Como a violência brasileira se parece com a vista no restante da América Latina? Acredito que a atual situação no Brasil é melhor descrita como uma guerra crônica de pequena escala, que permeia a vida das pessoas na maior parte do País. O Brasil perde mais cidadãos para a violência a cada ano do que os Estados Unidos (perderam) durante toda a Guerra do Vietnã. Cerca de 800 mil brasileiros foram assassinados desde o ano 2000, o que equivale a eliminar toda a população, por exemplo, da cidade de João Pessoa. O Brasil teve relativamente um alto nível de violência no século 19, em parte por causa da escravidão, mas também por causa do código de honra e justiçamento que caracteriza sociedades que têm Estados fracos. No entanto, nos anos 1870 a taxa de homicídios já era bem mais baixa do que é hoje, sugerindo que o Brasil está vivenciando um processo de descivilização. Por volta de 1950, a Venezuela era tão violenta quanto a Cingapura, mas enquanto os homicídios caíram nesta, os crimes subiram naquela. Como resultado, o risco atual de um jovem morrer assassinado na Venezuela é 500 vezes maior do que em Cingapura.
O que liga o tipo de violência vista no Brasil aos casos vistos em outros países onde há alto nível de criminalidade? Sociedades violentas não têm somente assassinatos, elas também possuem um diferente tipo de assassinato. Nesses locais, são geralmente homens jovens matando homens jovens em um contexto de conflitos sobre reputação, drogas ou sexo. Em todas essas sociedades, o assassinato é parte de um política violenta, geralmente ligadas a gangues e cartéis criminosos. É sobre defender o território, eliminar o oponente, assustar outros, proteger um negócio lucrativo e obter dinheiro de proteção.
O governo federal decidiu por uma intervenção federal no Rio de Janeiro. Qual a efetividade de uma medida com uso das Forças Armadas?
No México, o Estado tem tentado intervenções militares similares para lidar com o problema da violência e das drogas. A evidência científica sugere que essas intervenções fizeram o problema piorar, e não melhorar. Assim, a decisão similar no Brasil pode parecer uma boa jogada para o público no curto prazo, mas poderá não atingir nada. A escalada do crime e o problema com gangues no Rio provavelmente requerem uma estratégia de longo prazo focada no fortalecimento das polícias, assim como na aplicação de estratégias eficazes nas áreas da educação, saúde pública e planejamento urbano. Ao menos, deve ser considerada uma avaliação independente da intervenção militar. Ainda há o risco de que muito dinheiro seja desperdiçado em abordagens que causam mais mal do que bem.
Mesmo com recorde de violência, o Brasil debate no Congresso medidas como facilitar o acesso a armas (por meio da revogação do Estatuto do Desarmamento) e endurecer penas para os criminosos. Qual a sua análise disso? Como um outsider, eu não posso fazer recomendações para o Brasil ou para os congressistas brasileiros. No entanto, chama a minha atenção o fato de o Brasil ser caracterizado por uma cultura de falta de respeito pela lei, o que se espalha por todo o sistema: a chance de um assassino ser preso é mínima, a corrupção está espalhada, e os agentes da polícia quase nunca são responsabilizados por execuções extrajudiciais. Sugeriria que o Brasil necessita de uma reforma que é mais profunda do que mais tempo de pena para criminosos ou mesmo mais armas nas ruas. Duvido que penas mais longas terão um efeito positivo, ainda se as prisões brasileiras tivessem a capacidade de aprisionar pessoas mais tempo. Assegurar-se que a punição seja justa, provável e rápida importa muito mais. Não há evidência de que facilitar o acesso a armas e matar pessoas em atos de legítima defesa tenha efeitos positivos nas taxas de homicídio. Ao contrário. Um recente estudo sobre os efeitos de uma lei que deu imunidade às pessoas que usam a força letal em legítima defesa na Flórida mostrou que a lei levou ao aumento de 31% nas mortes por arma de fogo. Legislações restritivas para acesso a armas de fogo são ligadas a quedas no número de suicídio e homicídio em vários estudos. Todas as sociedades no mundo com taxas de homicídio muito baixas têm forte e efetivo controle sobre a distribuição ilegal, posse e uso de armas de fogo.
Sobre a crise no sistema carcerário, como ela deve ser abordada no âmbito de um programa de segurança pública? Acredito que o sistema prisional no Brasil não tem uma, mas várias crises, cada uma das quais com uma causa diferente e que deve ser tratada de forma diferente. Uma grande proporção de detentos está em uma situação de pré-julgamento (provisórios) e o tempo que se leva até o julgamento é muito longo. Então, o sistema judicial precisa se tornar mais eficiente. As prisões estão superlotadas, inseguras, dominadas por gangues que dão continuidade à atividade criminosa dentro da prisão, e sofre de incapacidade para atender às necessidades de saúde física e mental dos detentos. Há nelas muitos criminosos primários com crimes de droga, que deveriam estar se tratando e não encarcerados. E, finalmente, não há um suporte de qualidade depois que o detento é liberado, resultando em um alto índice de reincidência.
Nas suas palestras, o senhor costuma dizer que entre os pilares da redução da violência está a garantia de que autoridades públicas e a sociedade estejam comprometidas com o cumprimento da lei, melhorando a governança e os serviços públicos. O que quer dizer com isso? Há evidência sugerindo que é essencial uma polícia profissional e efetiva que é vista trabalhando pela população mais do que contra ela, especialmente nas áreas mais necessitadas. Cidadãos devem ter uma boa razão para cumprir a lei, e sentir que ignorá-la não compensa. Serviços públicos inclusivos significam, por exemplo, escolas de alta qualidade para todos e que apoiem o potencial dos jovens, que sejam seguras, e que efetivamente lidem com os problemas de comportamento. Historicamente, redução de homicídios faz parte do que chamo de ofensivas civilizacionais. Às vezes, elas são lideradas por líderes carismáticos, mas também a pressão social, por meio de atores como o movimento das mulheres e por coalizões políticas, econômicas e religiosas, é decisiva. Reforçar a lei e a ordem é importante, mas ofensivas civilizacionais vão além: elas com frequência visam a reformar o Estado, promover um senso de responsabilidade e respeito, e encorajam uma boa educação parental.
O senhor geralmente fala sobre o esforço que tem de ser feito por líderes de várias áreas, inclusive na política, para por a redução dos homicídios como tema principal. Com que frequência o senhor vê políticos, especialmente dos países de terceiro mundo, desenvolverem políticas de segurança pública baseadas em evidências de estudos científicos? Um dos principais obstáculos que vejo em muitos países é uma efetiva colaboração entre setores, principalmente entre o setor de saúde pública e o sistema de justiça criminal. Há muita evidência sugerindo que vários problemas associados com a violência, como o abuso de drogas e álcool, problemas de saúde mental, maus-tratos contra crianças, e violência doméstica podem ser enfrentados por meio de uma abordagem da área da saúde. Infelizmente, muitos consideram essa abordagem como suave, enquanto muitos nos sistemas de saúde e educação olham para a polícia como repressiva e desinteressada em lidar com com problemas sociais e individuais. A realidade é que um trabalho colaborativo entre departamentos é uma importante base para uma redução da violência mais efetiva.
Além disso, o senhor fala sobre a necessidade de mudanças no sistema de justiça criminal. O Brasil, por exemplo, não sabe quantos homicídios são esclarecidos anualmente. Como a impunidade está ligada a níveis de violência mais altos? Não há uma estatística nacional para a impunidade homicida, mas vários estudos analisaram essa questão em cidades brasileiras. Os dados mostram que cerca de 2 a 10% de todos os homicídios levam a uma condenação, mais de 90% de todos os assassinatos não são punidos pelo Estado por meio do cumprimento da lei. Como resultado, criminosos são encorajados a matar, é mais provável que jovens se vinguem, e é mais provável que a polícia se envolva com execuções extrajudiciais. Aumentar a probabilidade de punição é essencial para lidar com o círculo vicioso. Isso exigirá mais monitoramento e policiamento focado em áreas de maior criminalidade, uma polícia melhor treinada, mais investigação criminal e um julgamento mais rápido.
O Brasil atravessa uma crise econômica. O que a ciência diz sobre a relação entre períodos de instabilidade política e econômica e os índices de criminalidade?Períodos de crise econômica por si só não são suficientes para aumentar taxas de homicídio. Há mais evidência sugerindo relação entre conflito e violência criminal com períodos em que toda a elite política é notada como não confiável, corrupta e oportunista. Pode ser que a atual expansão do crime organizado no Brasil seja facilitado pelo cinismo que as pessoas sentem pelo Estado. No geral, acredito que provavelmente a maior crise em termos de segurança é a continuada expansão do crime organizado, a inabilidade para controlar o mercado de crack e cocaína, e generalizada disponibilidade de armas de fogo.
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