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Um mal sem vacina, sem defesa – e que custa caro

O racismo não tem vacina, é indefensável – e, provou-se agora, danoso à economia

João Gabriel de Lima, O Estado de S.Paulo – 22 de agosto de 2020 | 03h00

“Não existe vacina contra o racismo.” A frase marcou o discurso da senadora Kamala Harris, candidata a vice-presidente dos Estados Unidos – e foi o ponto alto da convenção do Partido Democrata.

Indianos, vietnamitas, mexicanos. Etíopes, chineses, árabes. “Provavelmente, todos americanos” – comentou um amigo ao observar os passantes, depois do almoço numa cafeteria judaico-libanesa em Palo Alto, na Califórnia, no ano passado. A cafeteria, Oren’s Hummus, fica a um Uber de distância da universidade Berkeley, onde os pais de Kamala Harris – ela indiana, ele jamaicano – se conheceram. E a uma caminhada de dez minutos da universidade Stanford, onde Donald, o pai da senadora, deu aula.

As cinco empresas de tecnologia mais valiosas do mundo estão na costa oeste dos Estados Unidos. Três na Califórnia: Apple, Google e Facebook. Não é por acaso. A região onde Kamala Harris nasceu tem uma cultura propícia à inovação. Universidades fervilhantes. Vida cultural intensa. Acesso ao capital de risco. Competição saudável. E – o mais importante – gente do mundo inteiro, de todos os gêneros e etnias. “O racismo é ruim para a economia. As empresas prosperam quando contratam os trabalhadores mais talentosos e produtivos, sem nenhum tipo de discriminação”, diz o professor Rodrigo Soares, personagem do minipodcast da semana.

Ele é orientador e autor de artigos, em parceria com Guilherme Hirata, sobre racismo no mundo do trabalho. Um deles mostra como a discriminação no Brasil é menor em mercados mais vibrantes e expostos à concorrência. Soares e Hirata confirmaram a hipótese ao estudar as regiões mais afetadas pela abertura comercial no governo Collor. O racismo não tem vacina, é indefensável do ponto de vista moral – e, provou-se agora, danoso para a economia.

O trabalho para superar tal chaga, como disse Kamala Harris, é duro e constante. Para combater um problema é necessário entendê-lo. A bibliografia sobre o assunto no Brasil começa a se encorpar, com livros como Racismo Estrutural, de Sílvio Almeida, e Pequeno Manual Antirracista, de Djamila Ribeiro. Na academia, estudos como o de Soares e Hirata ajudam a iluminar o tema. Em outro paper, Fernando Monteiro, Marcos Rangel e Ricardo Madeira mostram que a discriminação começa muito antes do mercado de trabalho, no próprio sistema educacional (há links para os estudos na versão digital da coluna).

Na política, o fenômeno do populismo – que desafia as democracias liberais – propaga uma noção torta de patriotismo que estimula o racismo. A Hungria para os húngaros (e não os imigrantes), a Índia para os indianos (mas só os que professam a religião hinduísta, excluindo os muçulmanos) – e assim sucessivamente.

As democracias liberais, no entanto, já estão encontrando o antídoto. É aquilo que o cientista político Yascha Mounk chama de “patriotismo inclusivo”. Em seu livro O Povo Contra a Democracia, Mounk cita o famoso discurso de campanha de Emmanuel Macron, em abril de 2017. “Eu vejo à minha frente Marselha, uma cidade francesa. Eu vejo os armênios. Eu vejo os argelinos. Os italianos. Os marroquinos, os tunisianos, os senegaleses. Eu vejo, na verdade, os marselheses. Eu vejo os franceses!”

A live multicultural do Partido Democrata – e, em especial, o discurso de Kamala Harris – seguiu o mesmo tom de Macron. Não chega a ser uma vacina contra o racismo. Pode ser, no entanto, um caminho a seguir.

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