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O que é boa política?

Nas eleições, não há espaço para propostas de políticas públicas cuidadosamente desenhadas

Pedro Fernando Nery, O Estado de S.Paulo – 03 de novembro de 2020 | 05h00

Os EUA decidem hoje o seu próximo presidente. Hillary Clinton, a perdedora 4 anos atrás, reflete no livro What Happened sobre as campanhas eleitorais da nossa era. Estudos mostram que o noticiário daquela eleição concentrou uma parcela insignificante da cobertura às propostas formuladas por especialistas do seu time. Acusações, questões de personalidade e propostas mirabolantes de Trump ocuparam quase toda a cobertura. Hillary dá a entender que se arrepende: a boa política pública pode não ser a boa política.

Depois de encarar promessas populistas à direita (de Trump) e à esquerda (do correligionário Sanders nas primárias), ela parece se render à máxima de que good policy is not good politics: não há espaço nas eleições para propostas de políticas públicas cuidadosamente desenhadas. Ela chegou a cogitar apresentar um programa de renda básica universal, mas desistiu por não conseguir fechar a conta do custeio. Na autobiografia, lamenta: deveria ter lançado a proposta como aspiração, e solucionar os detalhes depois.

Na coluna anterior, tratamos das promessas de Guilherme Boulos para a prefeitura. Mas as promessas hiperbólicas não são exclusivas da esquerda. No momento em que busca sua reeleição, Trump concluiu parcela ínfima do prometido muro (e não fez o México pagar por ele).

Na quinta-feira passada, o ministro da Economia declarou: “Há uma narrativa de que eu prometo e não entrego”. É uma referência pertinente de promessas à direita: em 2018, Paulo Guedes prometeu zerar o déficit primário ainda no primeiro ano de governo (o valor no vermelho foi de R$ 95 bilhões) e privatizações acima de R$ 1 trilhão (o secretário da área já se demitiu).

Na corrida à prefeitura de São Paulo, as promessas de Boulos não são menos factíveis que as de concorrentes. Adversários prometem cortes de impostos que esbarram em proibições parecidas, por exemplo, quanto à Lei de Responsabilidade Fiscal. Juras de privatização esbarram nas dificuldades enfrentadas por Guedes.

Leitores comentaram a coluna de Boulos concordando com inconsistências do programa, mas explicando ver no candidato uma chance maior de concretização de uma determinada plataforma. Efetivamente, o “vou fazer” dos candidatos é na prática um “quero fazer” – e para muitos eleitores querer já é um diferencial em relação a outros postulantes. Seja a promessa de renda básica e passe livre ou corte de impostos e privatizações.

Especificamente em Boulos, há mesmo um compromisso claro com redução da desigualdade – Jeff Nascimento, da Oxfam, destaca de forma ilustrativa que entre os principais candidatos não há programa que chegue perto em menções a “desigualdade” ou “social”. Como mostram os dados do Atlas do Desenvolvimento Humano, a capital paulista tem as 5 regiões de maior desenvolvimento humano do País, quase “gabaritando” esta versão do IDH. Uma prosperidade que divide espaço com privações, um abismo que tende a aumentar com a devastadora crise atual.

Uma gestão Boulos poderia, sim, promover transformações, ainda que não na magnitude que alguns esperam – especialmente sem brigar pelo aumento da tributação dos mais ricos e a reforma da previdência, como argumentei. De fato, a campanha aponta que os valores envolvidos no programa são bem mais modestos do que alegam os adversários, reproduzidos na coluna.

Realidade
À medida que o plano de governo do PSOL se torna mais realista, também será menos sedutor para os eleitores. Uma renda básica para 3 milhões, em continuação ao Auxílio Emergencial, e passe livre para todos sem emprego formal poderia superar os R$ 25 bilhões anuais. Nos últimos dias, a campanha colocou parte da plataforma de forma mais clara: um programa mais factível, e naturalmente menos abrangente.

O número de 3 milhões de “atendidos” com a renda básica não rivaliza com os 3,4 milhões que receberam o Auxílio Emergencial na cidade: na verdade, seriam 3 milhões de atendidos apenas indiretamente, e 1 milhão de benefícios de fato. Uma redução de pelo menos 70% no número de pagamentos em relação ao Auxílio Emergencial, ou 7 milhões a menos de “atendidos” seguindo o método proposto.

O passe livre para desempregados segue pouco claro: os mesmos 3,4 milhões do auxílio emergencial não têm emprego formal, uma conta com potencial de vários bilhões. Havendo uma lógica limitação, há entre os eleitores, inevitavelmente, muitos desempregados que não vão receber o passe livre, assim como há favorecidos pelo Auxílio que ficarão de fora da renda básica. O hiato entre aspiração e realidade será ainda maior sem aumentos significativos na arrecadação do IPTU, ISS e contribuição previdenciária, o que nenhum candidato admite.

Propor boa política pública não é a boa política eleitoral. É uma escolha sensível para todas as campanhas, principalmente uma vibrante como a de Boulos.

* Doutor em Economia

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