“FORÇAS DEMOCRÁTICAS PRECISAM SE JUNTAR E CRIAR UMA CONTRANARRATIVA À POLÍTICA DO ÓDIO”
Para estudiosa em autoritarismo premiada com o Pulitzer, pós-pandemia exige refundar partidos e explicar como as instituições importam para a vida real das pessoas
Texto: Luciano Huck, especial para o Estado – 05 de dezembro de 2020
Anne Applebaum observou de perto, reportou e analisou o colapso dos regimes totalitários comunistas do Leste europeu na virada dos anos 1980/1990. E tem observado de perto, reportado e analisado com argúcia a recente ascensão de governos de extrema-direita na Europa, especialmente na Polônia, onde passou a viver. A historiadora, que foi editora da revista The Economist e colunista do Washington Post, é uma referência em estudos sobre o autoritarismo contemporâneo no Ocidente.
Por dois motivos, eu fui atrás de Applebaum, que hoje dirige um projeto de pesquisa sobre propaganda e desinformação na Universidade Johns Hopkins (Washington DC). Primeiro, porque ela lançou um dos livros mais cirúrgicos de 2020: O Crepúsculo da Democracia, em que ela traça o perfil de personagens europeus e norte-americanos que desembarcaram do projeto humanista lançado no fim da Guerra Fria e que aderiram à nova geração de ideologias iliberais. Segundo, porque parecem voltar a soprar no Ocidente as brisas de uma correção democrática. A vitória estrondosa de Joe Biden sobre Donald Trump, o maior símbolo do que eu chamo de tecnopopulismo, não é trivial e precisa ser entendida – até para ser emulada.
Essa norte-americana de 56 anos, ganhadora do prestigioso Prêmio Pulitzer, foi uma das primeiras a alertar para a transformação de conservadores que diziam acreditar na democracia liberal, no livre mercado e nos pesos e contrapesos do Estado de direito em um monstro indomável que se alimenta do nacionalismo econômico, da tentativa constante de controle sobre a mídia, a polícia e o Judiciário, do isolacionismo, da negação à ciência, dos ataques às minorias e do exercício constante do ódio.
Para Applebaum, não cabe chorar o leite derramado, mas se empenhar em identificar tais forças e rapidamente criar um movimento capaz de brecá-las. Movimento esse que, segundo ela, deveria nascer da refundação dos partidos e, sobretudo, da busca de sensos comuns. É sobre esse irresistível chamado para um reagrupamento político e para a instalação de uma contranarrativa a fim de deter os extremos antidemocráticos que converso a seguir com essa corajosa mulher.
Applebaum se junta, hoje, a outras figuras da vanguarda do pensamento nesta série de entrevistas do Estadão. Notáveis como a economista Esther Duflo (Nobel de 2019), o filósofo Yuval Harari, o guru digital Nandan Nilekani, entre outros, todos eles iluminadores do mundo pós-pandemia, capazes de nos fazer refletir – e, por que não, agir.
Luciano Huck: Você era aclamada como uma respeitada intelectual conservadora, de inclinação liberal, mas passou a ser vista como “persona non grata” por boa parte da direita na Europa e nos EUA. O que aconteceu?
Anne Applebaum: O movimento conservador se dividiu em dois nos últimos 10, 15 anos. Ainda existe uma centro-direita, a depender do país. Mas uma parte da direita se tornou muito mais radical. E, ao se radicalizar e se tornar dependente de novas formas de comunicação, ela me perdeu. E perdeu muitas outras pessoas também, embora tenha ganho novos seguidores. Na maioria dos países ocidentais, a direita, tal qual a esquerda, sempre foi uma espécie de coalizão, com diferentes correntes dentro dela. O que aconteceu na última década é que a ala radical tomou conta dessa coalizão. E isso ocorreu de várias formas em muitos países.
Luciano Huck: Está cada vez mais difícil pensar sobre direita e esquerda nesse quadro de radicalização extrema. Mesmo que tenhamos 50 ideias alinhadas, uma única ideia dissonante vira pretexto para pedir cancelamento. Lendo sua obra, você já flertou com diferentes vertentes de pensamento. Como você enxerga essa questão hoje em dia?
Anne Applebaum: Os dois lados operam de formas diferentes, usando táticas diferentes, mas ambos buscam cancelar, desmerecer e descartar seus oponentes. Veja a forma como Donald Trump se livrou de tantos republicanos moderados, de qualquer pessoa que fosse mais centrista e que não concordasse com ele. Ele os atacava no Twitter, para depois seus seguidores os atacarem no Twitter. De certa forma, é a versão direitista iliberal do que tem sido feito pela esquerda no meio acadêmico. Ambos os lados políticos se tornaram mais radicais, parcialmente pelo fato de que agora as pessoas estão performando umas para as outras nas mídias sociais. As discussões que antes aconteciam em quartos pequenos agora acontecem na frente de todos. Isso fez com que se tornassem caricaturas ou cartuns.
Luciano Huck: A grande ameaça às democracias, a meu ver, não se dará por meio de tanques de guerra e de soldados. Estamos vivendo o perigo dos golpes “botox”. Governos eleitos democraticamente, em sua maioria com uma narrativa populista, usando as falhas disfuncionais das redes sociais para amplificar suas mensagens e corroer o Estado por dentro, como cupins. Tome o caso da Polônia. Em 2010, era um dos países mais promissores da União Europeia – uma ilha de inovação, educação e empreendedorismo. Hoje, dez anos depois, temos um governo xenófobo, antidemocrático, antissemita, ultraconservador, extremista. Qual o aprendizado para o Brasil não seguir a mesma perversa trilha?
Anne Applebaum: Bom, o primeiro passo é identificá-los e não elegê-los. Porque, assim que eles ganham a eleição, eles começam a mudar as instituições. O partido que governa a Polônia nem sempre foi radical e extremista. Durante muito tempo, ele pareceu um partido conservador normal, com base ampla e ambições “mainstream”. Foi desse modo que ele ganhou a primeira eleição, em 2015, aliás. O problema foi que, assim que ele tomou o poder, ele começou, como você disse, a alterar o sistema. Ele assumiu o controle da televisão estatal, que era neutra e um tanto tediosa, e a transformou em uma plataforma de campanhas de difamação contra seus oponentes, de forma bastante unilateral e tendenciosa. Ele dominou o tribunal constitucional e mudou sua natureza, para começar a influenciar como a Justiça funciona. E está tentando levar isso ainda mais longe, depois da reeleição.
Para o Brasil, seja a extrema-esquerda ou a extrema-direita, eu diria para que não os deixem dominar a mídia. E, sobretudo, que não os deixem alterar o sistema judicial. Mas o fundamental é tentar convencer as pessoas o quanto antes de que essas coisas que parecem um tanto abstratas importam. Juízes em suas togas, em algum lugar distante, em um tribunal… o que isso tem a ver comigo? Isso pareceu muito remoto para as pessoas na Polônia. Só mais recentemente, quando esse tribunal ilegítimo começou a tomar decisões controversas, como mudar a lei do aborto, é que muitos jovens perceberam que “opa, isso me afeta”. Logo, convencer pessoas rapidamente de que todo tipo de mudança institucional as impacta é muito importante. Na Polônia, a oposição falhou em fazê-lo.
Luciano Huck: O salto qualitativo da Polônia comunista para a Polônia livre e democrática foi gigante, potente a olhos vistos. Agora o país vive um retrocesso também gigante. Difícil de entender. No Brasil, a sociedade é muito desigual, principalmente a desigualdade de oportunidades, que, somada à corrupção endêmica e à falta de um projeto de país, justifica o descontentamento da maioria da população em relação à política e aos políticos. Isso torna o terreno fértil para o nascimento de narrativas antiestablishment, tecnopopulistas. As narrativas populistas vão sempre no caminho mais fácil: “Tem muito crime? Então, vamos armar a população”. O que justificou o surgimento e a eleição de extremistas na Polônia?
Anne Applebaum: Na Polônia, não temos uma sociedade muito desigual. E temos também uma sociedade em que todo mundo, todo mundo mesmo, dos pobres à classe média, às classes mais ricas, está melhor hoje do que há 20 anos. No entanto, os poloneses não estão melhores do que os europeus ocidentais, como os alemães. A raiva aqui é uma raiva com a desigualdade comparativa frente aos países vizinhos. Muitos poloneses passaram a questionar o fato de continuar “atrás” na Europa mesmo após 20 anos de capitalismo e democracia. Essa é uma coisa. Em segundo lugar, e isso é muito diferente do Brasil, é que temos um problema de emigração, não de imigração. Após a queda do comunismo, em 1989, e após a entrada da Polônia na União Europeia, em 2005, muitas oportunidades de trabalho se abriram em outros países. Muitos poloneses foram embora para trabalhar na Inglaterra, na Suécia, na Alemanha. A percepção para muitas pessoas, particularmente para as parcelas mais pobres do país, é a de que nossos filhos estão desaparecendo e o interior do país foi se esvaziando. Em muitos casos, tradições foram perdidas. Isso deu a sensação de que algo essencial sobre o país se perdeu. Isso costuma ocorrer em países durante o processo de modernização. Quando as coisas mudam muito rapidamente, algumas formas de viver de 10, 20 ou 30 anos deixam de existir. Aquela infância de que as pessoas se lembram já se foi. O jeito que elas cresceram já não é o mesmo jeito que seus filhos estão crescendo.
Então, o sentimento de inferioridade comparado ao Ocidente e essa sensação de que os filhos estão sumindo e as coisas estão ficando irreconhecíveis levaram as pessoas na direção de uma política nacionalista, raivosa e emocional. Como a política se moveu de discussões e debates no mundo real para o mundo online, a qualidade e a natureza do debate político mudaram e simplesmente favorecem pessoas raivosas, emocionais e que conseguem falar em frases curtas. E isso aconteceu em todo lugar. O tipo de campanha política conduzida nas redes sociais na Polônia é o mesmo do que foi feito no Brasil e é o mesmo tipo de campanha que Donald Trump conduziu nos EUA. A política mudou de algo que acontece na vida real para algo que acontece na internet – e isso é uma grande oportunidade para, como você disse, tecnopopulistas.
Luciano Huck: Seja a União Europeia, que hoje exige da Polônia e da Hungria que garantam o estado democrático de direito para ter acesso a recursos emergenciais pós-pandemia. Sejam as grandes potências mundiais engajadas na construção de uma economia mais limpa, que hoje pressionam o Brasil por um compromisso de fato com a preservação ambiental. Como você avalia essa atuação internacional de defesa da democracia, esse exercício global de pesos e contrapesos?
Anne Applebaum: Eu acho que algumas pressões são úteis, mas outras, não. A União Europeia teve muitos problemas em entender como reagir à Polônia e à Hungria, porque ela não foi estabelecida para punir seus próprios membros. Um dos grandes erros que o mundo liberal cometeu, sejam partidos políticos, jornalistas e, em alguns casos, chefes de Estado, como Angela Merkel e outros líderes da Europa, foi o de não pensar mais a fundo sobre como criar uma contranarrativa. Essa nova extrema-direita, tecnopopulista como você citou, trabalha junta, conectada, e compartilha táticas, consultorias, ideias de propaganda. Aqui na Polônia temos quatro partidos de oposição que não se unem em torno de uma mensagem comum. Mesmo o Partido Democrata nos EUA tem duas ou três diferentes facções, com dificuldade de se unir. Criar uma mensagem única em torno dessas grandes ameaças à democracia e encontrar formas de trabalhar juntos, além das fronteiras, para ajudar uns aos outros, é algo que ainda não foi feito. As forças democráticas ainda encaram a política como algo doméstico, nacional, feito apenas dentro das fronteiras. Mas a extrema-direita não pensa assim: ela atua internacionalmente, o que é estranho e paradoxal, já que é nacionalista. Até os trolls online da direita fazem as mesmas coisas em diferentes países. O centro, a centro-direita, a centro-esquerda, os liberais, os movimentos verdes, eles não entenderam que precisam trabalhar juntos, contra-atacar juntos
Luciano Huck: A eleição de Joe Biden, nos EUA, tem qual efeito nessas democracias iliberais e populistas que se multiplicaram mundo afora?
Anne Applebaum: Ela é relevante, mesmo que apenas simbolicamente. O simples fato de termos Trump como líder dos EUA era uma inspiração para a extrema-direita em todo o mundo. Seria mais importante se, como parte de sua política externa, Biden começasse a juntar líderes de democracias ao redor do mundo para ajudar a criar uma nova narrativa para promover a democracia e os valores liberais. Seria mais do que um projeto de mídia ou de diplomacia. É profundo. O que as nossas democracias podem fazer juntas? Podemos reformar a internet juntos? Podemos constranger as plataformas de internet juntos? Podemos juntos parar a lavagem de dinheiro internacional e o dinheiro sujo que distorcem toda a nossa democracia? Dizer que somos todos uma democracia não é o bastante. Precisamos de novos grandes projetos que mudem a forma como a política e a sociedade funcionam e com os quais as pessoas se identifiquem. Biden terá de confrontar a maior crise econômica na história americana recente, a maior crise de saúde pública da história americana recente, terríveis e maculadas relações ao redor do mundo, graças à desastrosa administração de Donald Trump. Ou seja, terá um problema atrás do outro. Mas parece que está surgindo o entendimento em Washington de que acabou a ideia de que os EUA, sozinhos, podem liderar o mundo democrático. Os EUA precisam trabalhar juntos com aliados e parceiros, talvez até com grupos de oposição, no Brasil, na Rússia ou em outros lugares, para atingir os objetivos que pretende.
Luciano Huck: Enxergo alguns desses governos tecnopopulistas, mesmo sendo de extrema-direita, voltando os olhos para Vladimir Putin. Não me assustaria o atual governo brasileiro migrar de uma narrativa de subserviência a Trump para Putin.
Anne Applebaum: É possível. Certamente é o que vai acontecer na Hungria e em alguns outros países na Europa Oriental. Não na Polônia, que continua a ter medo de Putin. Mas, sim, é possível.
Luciano Huck: A pandemia trouxe para o centro do debate temas muito importantes que não tinham o devido protagonismo. Combate às desigualdades, racismo, antirracismo, feminicídios, igualdade de gênero. Aliás, as melhores gestões da crise sanitária e econômica da covid-19 foram lideradas por mulheres, casos de Angela Merkel e Jacinda Ardern. Como você, como uma mulher de voz potente e ouvida ao redor do planeta, enxerga essa questão?
Anne Applebaum: Na minha visão, você deveria fazer a pergunta ao contrário. A pergunta deveria ser “Os países que estão preparados para eleger mulheres a posições de poder se saíram melhor na pandemia?”. Em outras palavras, não acho que foi o fato de as líderes serem mulheres, mas o fato de que esses países estavam maduros para ter mulheres em cargos de liderança. O que ficou claro na pandemia é que os países que se saíram melhor foram aqueles com maiores índices de confiança no poder público e na ciência. Olhando apenas para democracias: Nova Zelândia, Alemanha, Coreia do Sul, Taiwan, em todos esses casos havia uma questão de crença, de fé na burocracia pública, nos serviços e servidores públicos.
Luciano Huck: Estar no debate público exige um grande estoque pessoal de felicidade. É preciso ter muita energia para gastar e não se deixar derrubar. Você está nessa arena há um bom tempo, se envolvendo em temas espinhosos. Como é isso para você?
Anne Applebaum: Essa é uma pergunta interessante, porque é algo que mudou muito. Se você é político, jornalista ou alguém com esse tipo de atuação, sempre foi normal encontrar pessoas que discordam de você, algumas delas desagradáveis. Mas até uns dez anos atrás você não era o foco da raiva, do ódio dessas pessoas. Hoje, se você está na vida pública, em qualquer posição, se você for uma celebridade, um popstar, um atleta, tendo ou não a ver com política, você terá de se acostumar com a existência de campanhas negativas nas redes sociais, desse lado feio da natureza humana, que vem à tona especialmente quando as pessoas conseguem ser anônimas. Você precisa aprender a lidar com isso. A minha forma é simplesmente ignorar os ataques, mas é muito difícil as pessoas aprenderem isso. Você deve ter o mesmo problema, não? Espero que algum dia encontremos uma maneira de regular as plataformas sociais, não censurá-las, mas de encontrar alguma forma, algum algoritmo, que favoreça o discurso construtivo e um melhor diálogo. Esse é o meu grande desejo para a próxima década. Muita gente decente gostaria e poderia estar na vida pública, na política, e não o faz por medo dessa onda de lixo, dessas campanhas de difamação, mentiras e ódio. E me preocupa que a qualidade da vida pública sofra por causa disso, especialmente em democracias.
Luciano Huck: Ultimamente, as pessoas têm criado relação exageradamente passionais com os partidos e os políticos. Em vez de uma relação de noivado, deveríamos construir uma relação de clientes-cidadãos, com uma melhor capacidade de análise de ideias e projetos. Como se estivéssemos contratando um serviço, e não fazendo um pedido de casamento. Como você enxerga a formação de novas lideranças e o futuro da política partidária?
Anne Applebaum: Concordo com você. Estamos desesperadamente necessitados de um novo modelo de partido político. A social-democracia na Europa nasceu de sindicatos e grêmios, de pessoas reais se encontrando no trabalho. A democracia cristã, que compõe os principais partidos de direita e centro-direita na Europa, surgiu de movimentos baseados na igreja, não na religião, mas em grupos religiosos, pessoas reais que se conheciam em clubes da juventude católica e fóruns assim. Hoje, não está mais clara a conexão dos partidos com as pessoas. Eles perderam sua raiz e seu propósito. E, nesse sentido, não surpreende que as pessoas estejam começando novos movimentos políticos na internet. As pessoas agora experimentam a política de forma online e procuram pessoas online com quem possuam coisas em comum. Há um partido político na Europa que nasceu de um fórum de discussão na internet, o Movimento 5 Estrelas, da Itália. Infelizmente, nunca teve políticas muito claras e atraiu pessoas aleatórias e líderes iliberais. Mas é uma experiência interessante: uma forma de juntar pessoas em torno de um determinado conjunto de problemas, discutir esses temas online e criar um movimento político significativo. Suspeito que vamos ver mais casos desse tipo. Se você conseguir fazer com que as pessoas se motivem a trabalhar em suas comunidades, focando em problemas reais em vez de problemas de guerra cultural, que só fazem as pessoas sentirem raiva, isso pode fazer com que novas pessoas entrem na política. Ainda precisamos de partidos, do contrário nossos sistemas parlamentares não funcionam muito bem. Mas concordo com você de que os partidos modernos, como eles existem hoje, não refletem mais uma visão coerente de mundo.
Luciano Huck: Além de perder a capacidade de liderar qualquer agenda global, durante a pandemia o Brasil tornou-se um país a ser evitado. Nosso fracasso no combate à doença, impulsionado pelo negativismo do governo, que também atropelou nossa cultura, nosso patrimônio histórico, somado à destruição da Amazônia e a uma não política de defesa da floresta, o que afasta investidores relevantes, nos isolou do mundo e nos colocou nas piores condições possíveis para superar a profunda crise econômica. Como você avalia a situação do Brasil?
Anne Applebaum: Eu não sou uma expert sobre o Brasil, embora já tenha estado aí e adoraria voltar. Mas a lição para o Brasil é a mesma para tantos outros países. É ridícula a ideia de que o Brasil conseguirá prosperar, se desenvolver e melhorar a vida de seus cidadãos ao se descolar do resto do mundo. Nenhum de nós consegue viver sozinho. A pandemia nos ensinou que estamos todos conectados. A começar pela rapidez do contágio, causada pelo fluxo global de viagens. Do mesmo modo, as vacinas e os remédios para a doença são soluções globais, serão distribuídas graças a instituições internacionais. São farmacêuticas americanas trabalhando junto a empresas alemãs; uma das principais empresas alemãs é liderada por um casal turco-alemão, que é imigrante; a testagem dessas novas vacinas e tratamentos foi realizada ao redor de todo o mundo, África do Sul, Brasil, EUA, Grã-Bretanha… Todos nós estamos absolutamente integrados no mundo, querendo ou não. Assim, se o Brasil deseja prosperar e os brasileiros querem que o seu país seja mais feliz e mais habitável, eles precisam estar integrados ao resto do mundo e precisam se perguntar se possuem um governo que os sirva nesse sentido. A Amazônia é o seu grande tesouro internacional. É o que vocês possuem que os distingue. Cuidar dela e investir nela, preservando-a para futuras gerações, é uma das maiores coisas que o Brasil pode fazer para se tornar uma grande nação. Imaginar que queimá-la vai contribuir de alguma forma para o bem-estar dos brasileiros é estranho e errado.
Luciano Huck: No seu livro, você lembra uma passagem interessante da “sua turma de 1999”, usando uma festa de réveillon na sua casa como pano de fundo. Aquele grupo hoje em dia nem se cumprimenta em razão de divergências políticas e visões distintas sobre a democracia. Se você fizesse uma festa hoje na sua casa, qual seria o assunto? E como você imagina esse grupo daqui a 20 anos?
Anne Applebaum: A política promove reagrupamentos. Pessoas que antigamente eu considerava esquerdistas demais para conversar hoje são meus amigos. Pessoas que eram meus amigos agora estão em algum outro lugar. Esses reagrupamentos políticos acontecem periodicamente. Não há nada de estranho nisso. Na verdade, deveríamos tirar proveito disso. Acho que a lição da minha festa de 1999 é “tenha certeza que você terá sempre a capacidade de fazer novos amigos”. Ou, colocando de outra forma, “pense sempre em quem são os seus aliados, mas também em quem poderá ser seu aliado”. Se o projeto é proteger a Amazônia, por exemplo, ou transformar a economia brasileira, observe ao redor para entender quais grupos sociais, quais pessoas, quais partidos políticos poderão ser os seus aliados, mesmo que você ainda não os conheça. Encontre novos aliados, faça novas coalizões. As velhas coalizões podem não ser mais as corretas.
Luciano Huck: Muito obrigado
Artigo180