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O pacto errado

Aspásia Camargo, Jornal do Brasil, 28/12/1991

Todos os brasileiros se perguntam, neste final de ano, porque a crise brasileira tem sido tão madrasta, e porque ela se prolonga a despeito das inúmeras tentativas de promover o entendimento. No continente latino-americano, estamos perdendo uma liderança natural. Que sempre tivemos, enquanto no plano interno fermentam veleidades separatistas. A explicação para o impasse é simples: estamos perseguindo o pacto errado, buscando soluções parciais e imediatistas para uma crise que é estrutural e sistêmica, e que não será debelada pelo simples controle anti-inflacionário; nem por uma automática ” retomada do desenvolvimento”. Vamos ter que operar mudanças profundas nas formas de organização, nos valores – no paradigma.

O ciclo nacional-desenvolvimentista centralizador, durou meio século e foi tão bem-sucedido que seu esgotamento deixa “um enorme sentimento de orfandade e de perda. Estamos sem identidade, saudosos de JK e do fluxo natural de um progresso cujo comando e direção pareciam definitivos. O novo patamar é, no entanto, bem mais descentralizado e ágil. Exige maior iniciativa empresarial, civil e participativa. Como o país é desigual e grande não devemos pensar em um, mas em diversos “modelos” de desenvolvimento, adaptados à realidade de cada região. Precisamos ainda limitar e fortalecer as prioridades da União, pois não haverá mais recursos para pagar a conta da modernização incluindo também as das velhas e novas elites que, de Norte a Sul, vivem às custas do Estado. Este conluio perverso, de cunho regional oligárquico, é tão antigo que atravessou todos os governos, tanto democráticos quanto autoritários, distribuindo benesses que foram o preço que pagamos para nos mantermos unidos.

O Pacto Social, tantas vezes ensaiado, não deu certo porque foi concebido apenas para controlar salários e preços através de estruturas corporativas tripartites, já exauridas. Para romper o bloqueio, há que mobilizar as forças emergentes, sem esquecer os párias da “era desenvolvimentista”. Nesse novo acerto, o que o governo pode e deve fazer é fornecer o Capital Inicial do entendimento, operacionalizando os fundos para uma nova política social que beneficiam os mais pobres e reordenando as caóticas finanças públicas. Paulo Rabello de Castro sugere que tais recursos sejam em parte agenciados via privatização. Este seria um destino honroso para o sofrido leilão do Estado Nacional brasileiro.

Na Espanha, o Pacto Político, como é natural, precedeu o Pacto Social, ambos aceleradores pelo fantasma traumático da guerra civil de 1936. No Brasil, ao contrário, nossas elites perderam a função ancestral de se anteciparem aos fatos e correm o perigo de ver o gigante adormecido acordar enfurecido e famélico. Este gigante é a Federação, sacudida pela crise em muitos aspectos semelhantes a 1931 –, resta-nos agora enfrentar os descontentamentos separatistas que também abalaram o Sul do país em 1932. Estamos, efetivamente, em 1932. O Pacto Federativo é, portanto, o mais urgente e o mais grave porque dele dependem todos os outros entendimentos, inclusive a Reforma Tributária, insistentemente lembrada no pronunciamento presidencial de fim de ano.

Só a maior autonomia da Federação poderá sustar a crescente ilegitimidade do poder central diante de seus debilitados serviços essenciais, inspirando a adequada distribuição de responsabilidades e recursos entre o município, os estados e o governo federal; e evitando que, apesar da homogeneidade de língua e de religião, ocorra entre nós o que tem ocorrido com grandes territórios como a União Soviética: o risco de desmembramento, precedido pela crescente frouxidão e ilegitimidade do aços essenciais. Como sinal de alerta, estão aí as pesquisas nos mostrando que o separatismo ao Sul (46%) já assistente ao Norte (23%). Os primeiros culpando o poder central por excesso, isto é, pela cobrança de impostos que nos exaure desde Tiradentes, os segundos por falta, visto que nesta imensa e rica região, cheia de forasteiros, o poder público – justiça, controle, segurança – mal chega lá.

O pacto político com os governadores (e ex-governadores) foi dificultado pelo fato de que eram quase todos candidatos à presidência em competição. Nele faltou o Congresso, que agora se impõe como espaço privilegiado das negociações. Faltaram, também, os prefeitos para arbitrar a relação ainda simbiótica entre a União e os estados que precisam urgentemente diferenciar suas funções vitais. A confusão, de fato, não pode ser maior: o governo federal, muito debilitado pela Constituição de 1988, que lhe deu excessivos encargos, deseja, no entanto, recuperar os recursos que perdeu para desempenhar funções que, reconhecidamente, serão mais bem geridas pelo município! Dívidas em cadeia atravessam as várias instância do setor público (e privado) para, afinal, ninguém ficar sabendo quem deve a quem: e o calote é geral. Cabe, portanto, disciplinar as dívidas com equidade, fugindo sempre a acordos puramente casuísticos. A questão mais delicada do novo pacto federativo é, porém, a de saber como proteger o mais fraco sempre analisar o mais dinâmico, por mais eficiente. O diálogo Norte-Sul não é apenas um lema central da política externa, mas também da política interna. As distorções da representação incidem menos em favor do Nordeste (como muitos imaginam) e mais em favor dos recém-criados estados do Norte. A sub-representação de São Paulo é maior do que a super-representação dos demais. Impostos sem retorno, em detrimento do Sul, são compensados por incentivos, subsídios, isenções, dívidas,  orçamentárias de origens diversas. Neste estado corporativo e kafkiano é até possível que compensações contraditórias terminem por se anular umas às outras, sem vantagem para ninguém. Enquanto estes números não forem transparentes, os ressentimentos se agravarão. Desde as origens, a base do entendimento político repousa sobre territórios desigualmente representados e beneficiados. Cabe hoje inverter a questão, elaborando planos de desenvolvimento mais circunscritos, que incluam do Mercosul à biodiversidade amazônica, sem esquecer a nova Sudene e este Rincão cosmopolita, petrolífero, portuário e aberto que é o Rio de Janeiro.

ARTIGO1021

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