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A ‘Nona’, duzentos anos depois

João Marcos Coelho, O Estado de S. Paulo, 10/05/2024

Ludwig van Beethoven (1770-1827) sempre foi um compositor político. Quando compôs sua Terceira Sinfonia, em 1803, apelidada Eroica, estava arrebatado pelos ideais da Revolução Francesa, pretendia mudar-se para Paris e a dedicou a Napoleão Bonaparte. A obra gira em torno de uma marcha fúnebre que evoca as cerimônias patrióticas típicas da Revolução Francesa, que o fascinava.

Essa história já foi repetida mil e uma vezes; e, quando Napoleão se autocoroou imperador da França, mudou a dedicatória para “em louvor de um herói”. Vinte e um anos depois, quando estreou sua Nona Sinfonia, em 7 de maio de 1824, seu quarto e revolucionário movimento, a Ode à Alegria, com solistas e coral, a transformou na sinfonia que reina até hoje, e provavelmente reinará nos próximos séculos, como obra máxima da música ocidental.

A Eroica e a Ode à Alegria foram duas das músicas mais manipuladas politicamente nos últimos dois séculos. Na República de Weimar, os comunistas celebraram a Eroica como obra revolucionária, enquanto os nazistas ouviam nela uma representação do poder militar. Aliás, outra de suas sinfonias, a Sétima, também entra nesse balaio ideológico: os mesmos nazistas, a partir de 1933, com a instalação do Terceiro Reich, declararam que a Sétima era a “sinfonia do triunfo nazi”, enquanto no mundo pós-Segunda Guerra os comunistas da República Democrática Alemã a interpretaram como uma antecipação do triunfo do proletariado. A Filarmônica de Berlim tinha de tocá-la, todos os anos, no aniversário de Hitler.

Na década de 1970 continuou a esquizofrenia ideológica em plena Guerra Fria: a Nona Sinfonia foi coroada, em 1972, como o hino do Conselho da Europa e, em 1985, como hino oficial da Comunidade Europeia. Também em 1974, tornou-se o hino oficial da Rodésia, o regime branco racista da África do Sul.

Em 1989, marcando o final da União Soviética e da Guerra Fria, o muro que separou por décadas a Alemanha foi derrubado. A comemoração foi um acontecimento transmitido pela TV para o mundo inteiro, com o americano Leonard Bernstein regendo a Nona junto aos destroços do muro nefasto. E, como Lenny também era um sujeito político, substituiu “freude” por “freihert” no título de poema de Schiller usado por Beethoven, e o coro cantou

Não cabem culpas. Afinal, a vida se encarrega de plantar contradições na existência de todo ser humano. Com Beethoven também foi assim. Em 1814, ele escreveu: “Nunca mostre abertamente a todos os homens o desprezo que eles merecem, pois nunca se sabe quando se há de precisar deles”. Dez anos depois, semanas após a estreia da Nona, o compositor se inclinou a considerar a Ode à Alegria um erro – mais do que isso, uma “besteira”, e pretendeu substituí-la por um movimento puramente instrumental, sem texto.

SHERLOCK HOLMES. Felizmente, deixou a Nona intacta, tal como estreou há 200 anos. Theodore Albrecht, norteamericano de 78 anos que vem dedicando sua vida a Beethoven, é professor emérito de história da música na Universidade Kent, em Ohio, onde leciona desde 1992. Traduziu para o inglês e editou a correspondência e quatro volumes contendo todos os cadernos de conversação do compositor. E acaba de lançar nos EUA, pela Boydel Press, o livro Beethoven’s Ninth Symphony – Rehearsing and Performing Its 1824 Première (Nona Sinfonia de Beethoven – Ensaiando e Apresentando sua Estreia em 1824).

Ele declara, de início, que não vai discutir tecnicamente a sinfonia, nem seu legado do ponto de vista musical, político ou cultural. Debruçase sobre o concerto mítico daquele 7 de maio de 200 anos atrás em Viena para recriá-lo em todas as minúcias. E entrega o que promete: um raio X que desmonta versões reproduzidas em muitos livros e vários filmes. Aliás, um dos melhores é O Segredo de Beethoven, de 2006, com Ed Harris ótimo no papel-título – o roteiro se permite uma monumental licença poética ao inventar uma assistente glamourosa que o ajuda a compor a sinfonia (nem ela nem o romance jamais existiram).

Albrecht me lembra um Sherlock Holmes com sua lupa examinando com minúcias inimagináveis cada detalhe daquele dia. Aliás, ele conta a história desde o início de 1823, quando o compositor teve a ideia de faturar uma bolada dos endinheirados ingleses com uma nova obra.

Vou me concentrar no dia 7 de maio de 1824. Como era seu hábito, Beethoven acordou cedo. Seu querido sobrinho Karl saiu às 8 horas para fazer plantão na bilheteria do Teatro Kärntnertor. Seu factótum Anton Schindler chegou em seguida e pediu-lhe um punhado de ingressos para o concerto daquela noite. Foi ao barbeiro. Já na hora do almoço, Karl chegou entusiasmado com o volume de ingressos vendidos. Como não o encontrou, deixou-lhe um bilhete: “Querido tio! Como devo estar na bilheteria às 3 horas, comi rápido, porque demoraria muito para esperar por você. Nos veremos esta noite. (…) Houve até brigas nas filas”.

Depois do almoço, Schindler voltou contando que os ensaios não estavam indo bem: a soprano Gertrude Walpurgis Sontag, de apenas 18 anos, e a contralto vienense Caroline Unger, de 20, deixaram enfurecido o maestro Michael Umlauf. Sarcástico, Beethoven perguntou-lhe se havia mais amadores no concerto. Schindler negou, mas acrescentou: “Perdoe-me por notar que esta sinfonia é de fato uma exceção em relação às anteriores, e você mesmo deve admitir que é a mais grandiosa e a mais difícil”.

EM PÚBLICO. Desse momento até o retorno à casa após o concerto, o caderno de conversação que Beethoven mantinha consigo não registra mais nada. Isso comprova, segundo Albrecht, “que, na maior parte dos casos, Schindler e o público que estava assistindo poderiam falar em voz alta a sua parte das conversas e que Beethoven poderia responder oralmente. Isso fornece uma nova imagem de Beethoven em público durante esse período”. Simplificando: ele não estava totalmente surdo, podia falar com qualquer um desde que o interlocutor falasse mais alto que o habitual. Nem estava malvestido ou com o cabelo desgrenhado.

O concerto começou às 19 horas. Beethoven e Schindler chegaram ao Teatro Kärntnertor às 18h15. Foi um programa curto em relação aos habituais, de 4 a 6 horas cada um. Era difícil a qualquer compositor viabilizar uma apresentação. Ele precisava fazer anúncio em jornal, pedindo subscrições para arrecadar o suficiente para bancar copistas, responsáveis pelas cópias da partitura e das partes dos naipes de cada obra, assim como alugar o teatro e contratar os músicos. Por isso, os programas empilhavam piano solo, canções, música de câmara, concertos com orquestra, música religiosa, sinfonias.

Talvez pelo prestígio de que ele já desfrutava, a academia daquele 7 de maio foi curta, pouco mais de duas horas. Pela ordem: Abertura Consagração da Casa op. 124 (12’ ),Kyrie (10’ ),Credo (20’ )e Agnus Dei (15’ ),da Missa Solemnis op. 123, intervalo – e a Nona op. 125.

“A orquestra estava situada no palco com o maestro no centro”, escreve Albrecht. Os solistas vocais provavelmente estariam à sua frente, com Beethoven (e uma estante separada para sua partitura) perto de Caroline Unger. O coro ficou no fosso, na frente do palco, provavelmente voltado meio para trás, para poder observar o maestro.

Em seguida, Albrecht mistura um pouco de suposições com fatos comprovados. Diz que Beethoven “provavelmente” subiu ao palco com o maestro Michael Umlauf antes da abertura. Mas é incisivo ao afirmar que ele “não parecia um gênio desgrenhado”. “Em vez disso, exibia um novo corte de cabelo (ainda visível no retrato de Decker de 27 de maio), estava barbeado e banhado e – com casaco preto ou verde – estava vestido a caráter. Umlauf ficou na frente da orquestra para reger, Beethoven aparentemente de costas para o público, com outra partitura à sua frente. Ele pode até ter indicado os andamentos iniciais para cada movimento, mas isso teria sido mais para demonstrar sua participação pessoal no concerto do que por qualquer necessidade real.”

APLAUSOS. Uma das lendas mais repetidas sobre essa primeira execução da Nona Sinfonia conta que, no final da apresentação, Caroline Unger pegou o totalmente surdo Beethoven pela manga e apontou-o para o público, para que pudesse ver os aplausos.

“Os relatos desse incidente são contraditórios”, anota Albrecht. “Schindler contou que no final da apresentação, Unger virou o surdo Beethoven para que pudesse ver os aplausos. Em 1869, em Londres, a própria Caroline Unger (18031877) disse a George Grove que na ocasião ele continuou de pé, de costas para o público, e marcando o tempo, até que o virou, ou o induziu a se virar e encarar as pessoas que estavam batendo palmas.”

Nove anos antes, em 1860, o biógrafo americano de Beethoven, Alexander Wheelock Thayer, conheceu o pianista Sigismund Thalberg (1812-1871), maior rival de Franz Liszt, que, aos 12 anos, assistiu àquele concerto. Thalberg, que também estava presente no concerto, afirmou que Beethoven “estava com fraque preto, lenço de pescoço e colete brancos, meias de seda pretas, sapatos com fivelas”. Após o Scherzo da Nona Sinfonia, ele o puxou pela manga e apontou para o público; ele então se virou e fez uma reverência.

Albrecht argumenta que, do ponto de vista musical, esse incidente não faz sentido. Beethoven teria percebido, “através de sua audição existente, embora fraca e vibratória”, quando a música parou e o ambiente visual geral mudou. E conclui: “Beethoven nunca teria continuado a virar as páginas e Unger nunca o teria virado nessas circunstâncias”.

Esses e outras centenas de exemplos sepultam muitas histórias repetidas nestes dois séculos – e que não resistem à pesquisa de Albrecht. Esse livro é resultado de uma vida dedicada à garimpagem de fatos e informações que clareiem um pouco mais os detalhes daquela mítica sexta-feira de 200 anos atrás.

Naquela noite, nascia uma obra-prima atemporal, que soa contemporânea a cada vez que é interpretada. Justificase plenamente, portanto, a criteriosa pesquisa de décadas de Theodore Albrecht. Os fatos em relação à Nona não parecem mais tão fantasiosos, têm cheiro de fatos reais.

ARTIGO1095

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