O teatro ambiental de Lula
A escalada dos incêndios na Amazônia é só mais um indício de que a cenografia de Lula para disfarçar a distância entre as promessas e a ação está em processo acelerado de desmoralização
Por Notas & Informações, O Estado de S. Paulo, 10/05/2024
Segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, no primeiro quadrimestre de 2024 os focos de queimadas na Amazônia aumentaram 154% em relação ao mesmo período de 2023. Em todo o País, o aumento foi de 81%.
É verdade que parte desse volume é um efeito colateral da estiagem provocada pelo El Niño. É verdade também que, apesar do aumento dos incêndios, o desmatamento na Amazônia em 2023 caiu 50% em relação a 2022. Em geral, o desempenho do atual governo em relação ao meio ambiente é bem melhor que o do anterior. Mas seria preciso um esforço incomum para piorar o legado ambiental – este sim, genuinamente “maldito” – de um entusiasmado antiambientalista como Jair Bolsonaro.
Ainda assim, no primeiro ano do governo Lula, o desmate no Cerrado aumentou 43%, e os 9 mil km² de desmate na Amazônia ainda deixam o Brasil muito longe da meta de desmatamento zero até 2030. E o recorde histórico de incêndios na Amazônia em 2024 – 17.182 focos, quebrando a marca de 16.888 em 2003 – está aí para expor o abismo entre a retórica e a realidade numa área que foi vendida a Deus e ao mundo como uma grife do novo governo.
Lula nunca foi exatamente um entusiasta da causa ambiental, e sua relação com a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, nunca foi exatamente um mar de rosas. Mas, como formidável animal político que é, Lula sabe como ninguém farejar votos e loas. A defesa do meio ambiente entrou em cheio nas planilhas de seus marqueteiros petistas, e o presidente conseguiu passar uma borracha na campanha de difamação contra Marina em 2010. Nas eleições de 2022, Lula foi vendido aos brasileiros como uma espécie de herói da floresta e continua a se vender assim nos palcos internacionais.
Todo esse teatro teve seus momentos de emoção: Lula conseguiu contratar a realização da COP-30 em 2025 e recebeu a Cúpula da Amazônia em 2023. Com o presidente francês, Emmanuel Macron – aquele que quer fazer terra arrasada do acordo de livre comércio Mercosul-União Europeia para proteger seus agricultores –, apareceu saltitando em fotos e promoveu literalmente uma pajelança na floresta amazônica. Mas os números não se comoveram. A lua de mel com Macron foi festejada bem longe das comunidades yanomamis, onde as mortes em 2023 (363) superaram as 343 do ano de 2022, durante a era bolsonarista, qualificada de “genocida” pelos petistas.
O sucateamento dos órgãos de fiscalização ambiental por Bolsonaro foi catastrófico. Mas o Brasil logo descobrirá se a atual greve desses órgãos, que dura desde janeiro, terá um impacto ainda maior. Não é só melhoria salarial. Em carta aberta, os servidores denunciaram explicitamente as contradições da gestão petista e a distância entre as promessas e a prática. Já no fim de fevereiro, os autos de infração na Amazônia tinham caído na ordem de 70% a 90%. Não só os criminosos estão agindo impunemente, como as emissões de licenças para obras de infraestrutura estão paralisadas, com imensos custos para a população mais pobre do Brasil.
Em meados do ano passado, Lula deu de ombros à evisceração dos ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas no remelexo ministerial feito para aplacar o Centrão. Em fóruns internacionais, fala grosso contra os “ricos” e cobra alto o dinheiro para financiar a transição energética. Mas, aqui, o gasoduto de dinheiro público para subsidiar combustíveis fósseis opera a todo vapor.
Que o governo orgulhosamente desenvolvimentista manobre para desmoralizar o arcabouço e as metas fiscais que ele mesmo aprovou, não chega a ser surpresa. Já a desmoralização em áreas especialmente caras para a esquerda – sobretudo para uma nova linhagem progressista para quem o meio ambiente é uma prioridade absoluta, do tipo “custe o que custar” – é um pouco mais enigmática. Falta o quê? Competência? Vontade? Talvez ambos?
Invocar a ameaça do ogro Bolsonaro, apelidado de “Nero” nas redes sociais progressistas, ainda rende frisson na claque lulista. Mas para o grande público esse expediente cênico começa a perder o viço. Os números desabonadores continuam a sair, e a epopeia ambiental do demiurgo de Garanhuns assume cada vez mais ares de uma tragédia, e da pior qualidade.
ARTIGO1101