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Sem esquerda nem direita

O desafio urgente é vencer o vazio político e o sentimento de frustração democrática

Por Sebastião Ventura Pereira da Paixão Jr., O Estado de S. Paulo, 30/10/2023

O desencanto com a política traz consigo a desesperança com a democracia. Há um sentimento de estafa no ar. As pessoas estão cansadas de acreditar num futuro melhor, mas apenas receber frustrações sequenciais. Diante das dores da realidade e das fundas complexidades do presente, a fuga para um imaginário mundo perfeito soa como analgésico geral. A busca de ilusões revela certo traço de infantilidade, projetando fantasias mágicas a partir de discursos políticos pueris ou, melhor, de palavras feitas para mentir. Como bem pontuou a inteligência de Orwell, “ainda se acredita em conceitos como justiça, liberdade e verdade objetiva. Podem ser ilusões, mas ilusões são muito poderosas”. Então, onde será a fronteira da democracia como fato político ou mera ilusão do poder?

Em tempo, algo mudou no processo de dominação das massas. Os velhos métodos de aderência canina a autoridades referenciais não funcionam mais. Sem cortinas, o advento das redes sociais mudou o jogo, quebrando o monopólio informacional da narrativa coletiva com a consequente fragmentação da mensagem pública. Isso não quer dizer que as lógicas de massificação caíram por terra; ao contrário, tornaram-se ainda mais poderosas entre segmentos milimetricamente definidos e, assim, alvos fáceis de potentes algoritmos de multidimensional subjugação psicológica e cognitiva. Neste contexto de novas armas de cooptação de corações e mentes, o mundo inicia o importante debate do regramento da inteligência artificial.

O problema é que só teremos boas regras se tivermos bons Parlamentos. E só teremos bons Parlamentos quando a democracia exaltar líderes capazes de bem compreender a realidade posta e, mediante dialética política séria, criar normas justas e praticamente aplicáveis. Indo adiante, a aplicação das boas regras exige um Executivo responsável e comprometido com a realização do projeto político democrático. Igualmente, cabe a governantes e legisladores defender a prerrogativa política que o voto lhes dá, protegendo a democracia de investidas extravagantes das Cortes constitucionais e da indevida sobreposição do jurídico sobre o político. Em outras palavras, interpretar a Constituição não é esvaziar Parlamentos nem subjugar governos legitimamente eleitos.

O desafio urgente, portanto, é vencer o vazio político e o sentimento de frustração democrática. A corrente hipertrofia de poder das Supremas Cortes – o fenômeno não é apenas brasileiro – não durará para sempre. O motivo é simples: não se governam países, ainda mais continentais, por sentenças judiciais. O protagonismo atual é transitório e, como bem ensina a História, não se sustentará por longo período. Agora, se realmente queremos e acreditamos na democracia, fundamental compreender o porquê da circunstância atual e, ato contínuo, implementar medidas necessárias ao resgate da credibilidade da política perdida.

Objetivamente, a eleição presidencial passada no Brasil marca o fim da tardia puberdade constitucional de 1988. Sejamos francos, ninguém em sã consciência acredita na redenção de Lula e do PT. Aliás, a esquerda e seus partidos satélites são todos órfãos da mentira socialista, definitivamente derrotada desde a queda do Muro de Berlim. Sobre o ponto, em página alta da filosofia política brasileira, o professor Ernildo Stein bem pontua que “à medida que vai nascendo a convicção de que o socialismo é um termo operativamente vazio, isso produz uma profunda ferida no narcisismo de toda a esquerda”, vindo a acentuar que “somente quando a elaboração do luto, que terminará numa autocrítica das esquerdas, tomar a sério esta ideia de que a palavra socialismo está vacante, de que ela operativamente fracassou, somente então estaremos colocados no verdadeiro lugar, onde não se alimentam mais ilusões”.

Do outro lado, a direita brasileira é praticamente inexistente. Sejamos exatos, o ex-presidente Bolsonaro nunca foi um liberal, mas teve, sim, o mérito de trazer para seu governo o talento e a energia de Paulo Guedes, entre outros expoentes que implementaram inúmeras medidas em favor do livre mercado. Ora, tragicamente, não temos um partido político liberal de expressão no Brasil. Veja, por exemplo, o PL, partido de Bolsonaro, cada vez mais próximo do governo Lula. Soma-se a isso uma impressionante fragilidade da elite brasileira, desestruturada e incapaz de atuar organicamente em favor de pautas necessárias ao desenvolvimento nacional. E aí, diante de castelos de areia, ressuscitam-se retrocessos evidentes, como a contribuição sindical, o marco temporal de terras indígenas, entre outras pérolas do atraso.

Aqui chegando, o diagnóstico é categórico: o Brasil é desgovernado porque frágil em sua estrutura de poder. Diante de tal fragilidade estrutural, mais fácil ser autoritário do que ter autoridade. Alguns fatos saltam aos olhos; impossível não ver. Aliás, se o autoritarismo é relativo, a decrepitude institucional soa absoluta. Paradoxalmente, temos Constituição, mas estamos ficando sem lei. E, quando a legalidade afunda, a democracia perde suas boias de sustentação. Tudo sob o olhar complacente de uma esquerda melancólica e de uma direita pífia.

ARTIGO975

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