Envelhecimento dificulta salto militar do Japão
População em declínio representa obstáculo enquanto país enfrenta novas ameaças na região
Motoko Rich Hikari, Tradução de Guilherme Russo, O Estado de S. Paulo, 29/12/2023
Após 75 anos de paz, o Japão encara imensos desafios em seu impulso de construir Forças Armadas mais formidáveis.
Para entender por que, considere o Noshiro, uma nova fragata comissionada da Marinha japonesa equipada com mísseis antinavio e sonares de rastreamento submarino. A embarcação foi projetada com uma força sem contingente suficiente em mente: é capaz de funcionar com cerca de dois terços da tripulação necessária para operar o modelo que a antecedeu. Atualmente, ela vai ao mar até com menos marinheiros que isso.
Na ponte de comando do navio, tarefas que anteriormente ocupavam sete ou oito membros da equipe foram concentradas em três ou quatro. O enfermeiro do navio lava a louça e cozinha. Mais sprinklers (dispositivos de combate a incêndios) foram instalados para compensar a falta de marinheiros a bordo no combate de incêndios no mar.
“Nós estamos sistematizando muitas coisas”, afirmou o capitão Yoshihiro Iwata, de 44 anos, quando a fragata aportou recentemente em Sasebo, no sudoeste do Japão.
“Mas, para ser honesto, uma pessoa está realizando duas ou três tarefas diferentes”, acrescentou.
AMEAÇA. A tripulação diminuta do Noshiro confirma a drástica realidade demográfica do Japão conforme o país confronta sua maior ameaça de segurança em décadas com as ações militares cada vez mais provocativas da China e o crescente arsenal nuclear da Coreia do Norte.
O Japão se comprometeu em aumentar o gasto militar para 2% do produto interno bruto, ou em cerca de 60%, ao longo dos próximos cinco anos, o que daria ao país o terceiro maior orçamento de defesa no mundo. Tóquio tem adquirido rapidamente mísseis Tomahawk e gastou cerca de US$ 30 milhões (cerca de R$ 146 milhões) em sistemas de defesa com mísseis balísticos.
Mas conforme a população japonesa envelhece e encolhe rapidamente – cerca de um terço dos japoneses tem mais de 65 anos, e o número de nascimentos caiu ao menor nível já registrado no ano passado – especialistas preocupam-se com a possibilidade de as Forças Armadas japonesas simplesmente não serem capazes de obter contingente para operar frotas e esquadrões das formas tradicionais.
O Exército, a Marinha e a Força Aérea do Japão não conseguem alcançar metas de recrutamento há anos, e o número de militares na ativa no país – cerca de 247 mil – é quase 10% mais baixo que em 1990.
Mesmo enquanto enfrenta dificuldades para recrutar soldados convencionais, o Japão deve também atrair novos batalhões de soldados habilidosos em tecnologia para operar equipamentos sofisticados ou proteger o país de ciberataques. Para algumas tarefas, comandantes militares afirmam que podem contar com sistemas não tripulados, como drones, mas essa tecnologia ainda pode demandar grandes números de operadores.
ORÇAMENTO. Os desafios demográficos representam também desafios econômicos: há uma forte resistência do público a aumentos de impostos para financiar o orçamento de defesa em um momento de custos sociais crescentes para os idosos.
“O orçamento em si não é capaz de defender o país”, afirmou o vice-almirante aposentado Yoji Koda. “A maneira de recrutar é fundamental”, afirmou ele. “Significa pensar a respeito de como despertar uma comunidade japonesa meio adormecida.”
Sobrecarregados pelas guerras na Ucrânia e em Gaza, assim como pela crescente competição com a China, os Estados Unidos precisam que o Japão se torne um parceiro mais igual. Desde o fim da 2.ª Guerra, o Japão, que abriga mais tropas americanas do que qualquer outro país, tem sido efetivamente um protetorado dos EUA.
Até aqui, líderes políticos e comandantes militares americanos têm expressado aprovação sobre o progresso do Japão na área da defesa, elogiando sua expansão no orçamento e os novos investimentos em equipamentos militares. “Isso dá credibilidade à dissuasão”, afirmou o embaixador americano no Japão, Rahm Emanuel.
EXERCÍCIOS. Para demonstrar coordenação mais próxima, Japão e EUA ampliaram e aceleraram exercícios militares.
Em meados do ano, durante a maior edição da história do exercício anual bilateral Dragão Resoluto, o Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA e as Forças Armadas do Japão conduziram operações “lado a lado”, afirmou o tenente-general James Bierman, comandante da 3.ª Força Expedicionária da Marinha dos EUA, em Okinawa.
“A ideia é treinar soldados japoneses para que nós possamos verdadeiramente substituir uma plataforma ou capacidade de uma nação por outra”, afirmou o almirante Christopher Stone, comandante do 7.º Grupo Expedicionário de Ataque, em Okinawa.
A relação mais próxima ocorre à medida que a visão do público japonês sobre as Forças Armadas se transforma.
O Japão tem o pacifismo registrado em sua Constituição, e até recentemente a população se opunha à aquisição de mísseis capazes de atingir territórios inimigos ou mudanças constitucionais que permitissem que soldados japoneses, restringidos pela Constituição à defesa unicamente do Japão, combatessem em conflitos fora do Japão.
Agora, conforme grande parte da população passa a ver a China como uma ameaça à segurança do Japão, pesquisas mostram apoio por medidas desse tipo.
Isso, contudo, não se traduziu em um aumento no alistamento às Forças de Autodefesa do Japão (FAJ), como são conhecidas as Forças Armadas japonesas.
“A aceitação social das FAJ é muito mais ampla e profunda do que no passado”, afirmou a acadêmica Ayumi Teraoka, que pesquisa, em pós-doutorado, no Instituto para o Leste da Ásia, da Universidade Columbia. “Mas isso não se traduz como ‘OK, vamos mandar nossos filhos para as FAJ’.”
Em entrevista concedida no Ministério da Defesa, em Tóquio, o general Yoshihide Yoshida, chefe do EstadoMaior Conjunto do Japão, reconheceu os desafios.
“Estamos enfrentando enormes dificuldades no recrutamento”, afirmou ele, acrescentando que “não é suficiente fazermos apenas o que temos feito”, dada a rapidez com que o Japão quer implementar seus objetivos ambiciosos.
Para expandir os quadros gerais, o general Yoshida afirmou que as Forças de Autodefesa do Japão deveriam aumentar a proporção de mulheres para 12%, de menos de 8% atualmente, até 2030.
Os militares devem recrutar oficiais mais velhos, colaborar com o setor privado e acionar sistemas com inteligência artificial e não tripulados, afirmou ele.
Os obstáculos são enormes. Relatos de assédio sexual nas Forças Armadas desestimulam o alistamento de mulheres. Com o índice de desemprego em 2,5%, atrair novos universitários ou profissionais que queiram mudar de emprego é difícil.
“No passado, as pessoas vinham às Forças de Autodefesa porque não tinham outra escolha”, afirmou o coronel Toshiyuki Aso, diretor de recrutamento no centro militar de Naha, a capital de Okinawa. “Agora, eles têm muito mais opções.”
CAMPANHA. Pôsteres destinados a atrair mulheres e recrutas com mais idade cobriam as paredes do escritório, em um discreto prédio comercial de uma rua secundária. “Protejam as pessoas, é muito recompensador”, dizia um dos slogans, sob a foto de uma militar. “Um futuro para se orgulhar mesmo após a aposentadoria”, afirmava outro cartaz, destinado a oficiais reservistas. “Ainda não acabou!”
Um exercício recente realizado em uma base em Naha revelou demandas até para tarefas mundanas: 90 soldados se reuniram em uma pista de concreto para praticar reparos após um ataque inimigo hipotético. Ao longo de quase três horas, eles retiraram pilhas de escombros com retroescavadeiras e assentaram a terra com equipamentos de compactação de solo. Os soldados completaram suas tarefas com cuidado artesanal, homogeneizando o cimento recém misturado com espátulas e posteriormente varrendo o pó de cima do piso com pequenas escovas.
Fora os números absolutos, especialistas afirmam que forças armadas modernas demandam capacidades de alto nível para operar armamentos e equipamentos de vigilância avançados. O Japão fica atrás de seus aliados em termos de proteção contra guerra cibernética.
“Não existe nenhuma estrutura militar para defender os cidadãos japoneses contra ciberataques”, afirmou o cientista de computação Hideto Tomabechi, que aconselhou as Forças de Autodefesa do Japão e atua como pesquisador da Universidade Carnegie Mellon, em Pittsburgh.
O governo afirmou que planeja expandir sua força militar cibernética para até 4 mil agentes, apesar de muitos japoneses desconfiarem de operações de cibersegurança, que, acreditam, poderiam invadir sua privacidade. “Há muita preocupação sobre o governo ser capaz de vigiar todos os e-mails, dados e buscas na internet dos cidadãos privados”, afirmou o exministro da Defesa Itsunori Onodera.
Para tornar o serviço militar mais atraente, o general Yoshida afirmou que as Forças de Autodefesa do Japão precisam oferecer salários mais altos ou alojamentos melhores. Recrutadores da Marinha, por exemplo, têm dificuldades em atrair marinheiros porque os jovens se preocupam com a possibilidade de ficar sem wifi no mar. Marinheiros americanos, em contraste, conseguem acessar suas redes sociais pelo telefone e em certas ocasiões até receber encomendas da Amazon a bordo.
Algumas táticas de recrutamento fracassaram. Buscando emular os anúncios “Seja tudo o que você pode ser”, conhecidos dos americanos que vão ao cinema, as Forças de Autodefesa do Japão veicularam peças publicitárias no meio do ano antes de projeções do thriller The Silent Service, ambientado em um submarino nuclear.
Questionado sobre os anúncios terem conseguido inspirar novos alistamentos, o porta-voz do centro de recrutamento de Okinawa, Hironori Ogihara, sorriu gentilmente, encolhendo os ombros. “Ainda não”, disse.
Desde o fim da 2.ª Guerra, o Japão, país que mais abriga tropas americanas, tem sido efetivamente um protetorado dos EUA
Número de militares na ativa no Japão, cerca de 247 mil, é quase 10% mais baixo do que em 1990
ARTIGO985